O bombom Feitiçaria, lançado pela Lacta no final de 2020, teve duração efêmera. Após o protesto de grupos religiosos viralizar, associando o produto ao satanismo e sugerindo um pacto da empresa com o demônio, a Lacta mudou o nome do bombom. Um pequeno passo para a indústria de chocolate, mas um grande salto para o fundamentalismo religioso.
As redes sociais aumentaram a pressão dos consumidores sobre as marcas. Nos últimos anos algumas campanhas de marketing foram reprovadas pelo público, que já não tolera o machismo das antigas propagandas de cerveja, ou o racismo velado de campanhas que exibem somente loiras de olhos claros em um país miscigenado.
Porém a indignação dos consumidores é seletiva. A própria Lacta saiu ilesa ao comprar cacau com origem em uma fazenda com trabalhadores em regime análogo ao da escravidão, na Bahia. Os fanáticos preferiram atacar o nome do inocente bombom.
Acreditar que o demônio vai entrar nos lares brasileiros por meio da embalagem de um chocolate barato é digno de esquete do Porta dos Fundos. Seria cômico, se não tivéssemos exemplos de onde o fundamentalismo religioso pode chegar, aos poucos, avançando através de detalhes.
Em Persépolis, nos quadrinhos ou na adaptação em filme, Marjane Satrapi conta através da própria história como foram as transformações no Irã, desde a década de 1970. Um país com problemas, como todos os outros, mas onde a população tinha liberdades individuais, de criticar o governo, de expor as próprias ideias, de escolher as próprias roupas, de escolher os próprios chocolates.
Não foi da noite para o dia que o Irã se tornou uma república islâmica, que obriga as mulheres a usarem véu, proíbe o consumo de álcool e impõe hábitos religiosos à população, independente das crenças individuais.
Os extremistas islâmicos ganharam espaço aos poucos, ao formarem alianças estratégicas com grupos políticos que souberam tirar vantagem das crises. Desprezados e ridicularizados, os extremistas nunca foram levados a sério, sempre pareceram uma onda passageira de insanidade, até se perpetuarem no poder.
No Irã o problema não é o islamismo e suas práticas. Cada um que adote para si as práticas que julgar adequadas. O problema é a imposição dessas práticas por meio de instituições do Estado.
Seguindo o mesmo raciocínio, as igrejas neopentecostais não são a origem do problema. Elas crescem e se fortalecem ocupando lacunas na sociedade. Em muitos locais são a única fonte de socialização, diversão, entretenimento e até mesmo educação da comunidade local. Os pastores, na ausência de psicólogos, dão atenção e conselhos àqueles que costumam enfrentar problemas da hora em que acordam até adormecer.
A autoridade desenvolvida por pastores despertou o interesse de políticos perspicazes, que enxergaram os benefícios de alianças capazes de garantir votos nas eleições do Estado laico, que se rende pouco a pouco às influências religiosas.
Há dois anos o instituto Datafolha apontou que o Brasil tinha 66 milhões de evangélicos, pouco mais de 30% da população, e o pesquisador José Eustáquio Alves aponta que em 2050 o segmento deve atingir mais da metade dos brasileiros.
Na política é impensável disputar um cargo majoritário sem atender à metade dos eleitores. Para as empresas, os consumidores ditam as regras do Mercado, entidade com status quase divino na sociedade. A junção é temerária.
O fundamentalismo religioso ganha terreno elegendo deputados, senadores e até prefeito. Já costura acordos para ganhar uma vaga no Supremo Tribunal Federal, através de um ministro ‘terrivelmente evangélico’ – o problema está no terrivelmente – e em relação ao consumo, parece não tolerar sequer um mísero chocolate com nome destoante da doutrina, que dirá questões mais divergentes e relevantes.
Os criativos da Lacta ficaram tão putos de ter que mudar o nome do chocolate, que agora ele é apenas "morango".
ResponderExcluirPelo menos não é um chocolate de cristo, a sobremesa da santa ceia, milagre da multiplicação de bombons... :P
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