BBC News
Por Elisabeth Guimarães
Desolação. O olhar assustado de Ousado – uma onça pintada macho –, em nada lembra o felino que se aproximava dos barcos atracados no parque onde habitava. Habitava. Não habita mais. Com as quatro patas queimadas, Ousado foi resgatado. Agora, atraído pelos flashs, o animal fixa o olhar entre os elos da grade que o separa do fotógrafo. Olhos no olhos. Ousado nos convida a contemplar o horror que viu e viveu no Parque do Encontro das Águas. Terras queimando. Três milhões de hectares, só no Pantanal.
Araras-azuis em dispersão. Separação. Bando/debandada. A foto acima da manchete. O voo congelado/captado pela lente fotográfica aponta para o descaso/desaforo/desrespeito à flora, à fauna, a todos e a todas que vivem no planeta. Ora, se já era refúgio, refugiadas estavam. Estavam. Não estão mais. Ameaçadas de extinção, rompem com o tradicional voo em linha reta para o desvio. Desvio das chamas que queimam o refúgio. Das 6.500 araras-azuis existentes na natureza 700 viviam na fazenda São Francisco. Viviam. Não vivem mais. Assim, como cada um de nós, cada uma de nós não é; não está; não pertence mais.
Ser, estar, permanecer é só uma aparente existência. Não somos, estamos e permanecemos mais em tempo/espaço algum. Não enquanto os olhos das onças pintadas nos revelam o horror das queimadas. Desolação. A boa notícia é que Ousado voltou para a floresta, depois de um longo período de tratamento. Não mais para o local onde habitava, mas voltou. Ser, estar, permanecer é só um estado aparente de existência. Não somos, estamos e permanecemos mais em tempo/espaço algum. Não, enquanto araras-azuis procuram refúgio.
Não há como negar o absurdo discurso presidencial brasileiro na 75a Assembleia Geral da ONU, no dia 22 de setembro deste ano. O primeiro a ser transmitido. Não por outro motivo senão aquele que determina a transmissão da participação dos países por ordem alfabética. Brasil começa com /b/ de bebê. Uma democracia frágil como um bebê. Se não tivesse mais o que fazer, a ONU, talvez, mudaria esse critério. Assim, a assembleia abriu com a fala de um negacionista. Teoria da conspiração defendida. Virulenta defesa da administração pública federal diante da pandemia coronavírus. Contagem em dólares de um desauxílio/campanha eleitoral. Agora também nega as queimadas. Contudo, a Terra é redonda. Os terráqueos deixaram a marca da humanidade na Lua. Stephen Hawking demonstrou a formação dos buracos negros para nos lembrar que física quântica não tem nada a ver com “pensamento positivo”. Tem a ver com o presente absoluto. Seres humanos são incapazes de ver além da matéria. Cegos escolhem a "realidade" em que vivem. A escolha faz com que corpos de todas as dimensões sejam materializados em pontos diversos e espalhados pelo universo. Desta vez, escolhemos o fogo.
Araras azuis não mais vivem no Pantanal. Além das onças pintadas, agora, muitas outras espécies poderiam ser chamadas de "patas queimadas". Falta-me o ar. O ar pandêmico das minhas digressões. Uma potência política me atravessa. Ninguém me representa. Somos muitos e muitas. Mas, somos uma sociedade planetária? Somos? Estamos? Permanecemos? Não há mais tempo para espera. Só nos resta arejar ideias, trocar informações, unir forças, vicejar. Como? Eu como, tu comes, nós comemos. Quem come? Quantos seres humanos comem? Um dia, depois da terra queimada, depois de as águas invadirem os continentes, depois do ar sufocado, talvez, ninguém mais coma. Tudo depende de nossas escolhas... quânticas... talvez...
Agora, lendo o texto, confesso que, quando escolhi o tema, tinha esquecido que a publicação aconteceria no dia de celebrar os mortos. Faz sentido.
ResponderExcluirum texto urgente, Beth! Necessário porque enquanto não tivermos consciência de nossa co-existência com todos os seres, correremos o risco - cada vez mais iminente - de sucumbirmos todos. E como você bem coloca, o agravamento de tantas crises - ambientais, sociais, econômicas - não é obra do acaso, de má sorte, é fruto de uma escolha eleitoral. Apertar 17 era estar conivente com tudo isso. E nem dá pra dizer que alguém foi enganado. Esse é o presidente que talvez mais tenha cumprido suas promessas. Escabrosas promessas genocidas. 2022 tb chega, mas quanto tempo precisaremos para corrigir tanto estrago? Algum dia conseguiremos? Teremos alguma onça pintada em 2022 ou ela apenas ficará na memória estampando a nota de 50, que até 22 talvez valha ainda menos do que vale hoje. Seu texto faz pensar...
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ResponderExcluirAgradecida, meu amigo, Felipe. "Escabrosas promessas genocidas" Sim. Essas já foram cumpridas pelo atual chefe do executivo brasileiro. Infelizmente.