Dizem que os animais se parecem com seus donos. Difícil distinguir as semelhanças das coincidências, além do desejo de personificar o animal de estimação. Neste mês perdi uma cachorra de 17 anos. Inevitável projetar nela um jeito introspectivo e calado, de quem podia passa horas ao lado das pessoas, em aparente indiferença, quebrada por qualquer tentativa de afastamento.
Na mitologia grega, Epimeteu distribuiu quase todas as virtudes disponíveis aos animais. Já nasciam prontos, com tudo o que necessitavam para exercer a única função que poderiam exercer. Não há o dilema sobre o que ser quando crescer, pois não há alternativas a serem escolhidas.
Depois disso, Prometeu deu ao homem o que sobrou. A astúcia. Diferente da cachorra que nasceu há 17 anos e pouco mudou desde então, os humanos devem usar a astúcia da melhor forma diante da infinidade de possibilidades da vida. Eu era outra pessoa em 2004. Mudei de cidade, morei em umas três casas, fiz uma graduação, viajei, etc. Poderia ter feito tudo diferente. Foram as escolhas e as consequências que me trouxeram até aqui.
Esse mito, analisado e desdobrado pela filosofia ao longo de séculos, inspirou Sartre a escrever ‘O ser e o nada’, no qual os homens são, evidentemente, o nada. A ideia não é reduzir a humanidade, mas indicar que, ao contrário dos outros seres, não somos nada de forma inerente, apenas nos tornaremos algo, a depender de como utilizamos a astúcia e de uma série de fatores que se intercalam ao longo da vida.
Biologicamente a astúcia mitológica é o cortex pré-frontal, região desenvolvida no cérebro humano, que nos permite raciocinar, fantasiar, criar e imaginar situações, até onde se sabe, exclusivas de nossa espécie. A mitologia, possível graças ao córtex pré-frontal, é mais atrativa e sedutora do que as explicações da ciência moderna.
Temos a virtude presenteada por Prometeu, que pode nos tornar únicos, mas a sensação que fica, após acompanhar toda a vida de um cão, é a de que nos falta muita coisa. Pelo menos podemos aprender com a astúcia.
Restam as lições de companheirismo, a intensidade do afeto e a simplicidade de viver cada momento atual. Diante do presente decepcionante, nos enganamos com o futuro idealizado que nunca chega, ou nos escondemos no passado filtrado que omite problemas.
Epimeteu já fez os seres completos, preparados para não se importarem com o tempo marcado no relógio. Vivem o tempo da alma, marcado pelas necessidades e prazeres imediatos. Podem não conseguir imaginar histórias, nem escrever em blogs, mas têm muito a nos ensinar.
Sinto muito pela partida da sua cachorra. Mas também fico contente pelos muitos anos que vocês viveram juntos.
ResponderExcluirObrigado, Jacqueline! Coisas da vida, né... não tem como fugir.
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