Nossa mãe, o que é aquele
vestido, naquele prego?
Minhas filhas, é o vestido
de uma época que passou.
Passou quando, nossa mãe?
Éramos não-nascidas?
Minhas filhas, boca presa,
que memória é chicote:
se recua, toma força,
se retorna, bate forte.
Nossa mãe, dizei depressa,
que história é este vestido?
Minhas filhas, já me esqueço,
esqueçam disso também.
O vestido, nesse prego,
é fogo morto, passado.
Nossa mãe, esse vestido,
tanta renda esse segredo!
Minhas filhas, escutai
palavras de minha boca.
O circo vinha de longe,
andante de déu-em-déu,
trazia no ventre de lona
artistas de línguas outras.
Do meu ventre, já paridas,
as filhas que Deus me deu
sem saber se eu queria
ser esposa, mãe ou o quê.
Fui vivendo sem vontade
de me haver nessa viagem,
existindo assim, sem brilho,
sem viço, sem assombro.
Quando o circo cá esteve
com todo seu explendor,
me atravessou por dentro
um medo de permanência
e o ardor de uma paixão
de pele se iluminar.
Quis não ser espectadora,
quis a lona por meu lar.
Deixei vocês com a avó
e com o circo me casei.
Nossa mãe, porque nos faz
confissão de abandono?
Minhas filhas, escutai
o que conto e não escondo,
insistiram que eu lembrasse,
pois partilho tudo, agora.
Secai vossas lágrimas,
já que aqui estou de volta.
Mil cidades adicionei,
fiz cartaz, bilheteria…
mas foi como equilibrista,
sapatilha de cetim,
que meu brilho se fez sol
e existir ganhou sentido.
O vestido era a glória
dos meus dias bailarinos;
meu funâmbulo viver
foi feito de fantasia;
tive amores de plateia,
semeei risos suspensos;
me atirei em rede baixa,
fiz da queda meu descanço;
plantei vogal de surpresa,
tantos aplausos eu colhi.
Passei terras, passei pastos,
passei ponte, passei rio,
conheci diverso povo,
mandei cartas e retratos
mandei cartas e retratos
perguntando à vossa avó
como estavam minhas filhas.
Poucas palavras voltavam,
pontuando os meus dias,
os meus dias que voavam
nas alturas do equilíbrio.
Por um fio ia a vida
variando experiências,
mais enchendo de vontades,
vontades que, enfim, eu tinha.
Sonhei em sumir no mundo.
O mundo é grande e pequeno.
Um dia, porém, sem jeito,
em meu peito fez-se susto.
Pequeno, inocente, mudo,
no princípio nem me dei.
Era um aperto, um entrave
de fazer perna tremer
quando deveria andar.
A cabeça me pesava
pensamento sem ideia,
só um nó no raciocínio
de ver tanta gente embaixo
que babava por meu tombo:
mesmo que nem percebessem,
desejavam a vertigem
de presenciar, de frente,
próximo passo em falso
seguido de um corpo em queda
rumo ao chão sem proteção.
Olha, eu mesma me disse,
olha como são pequenos
e te enxergam pequenina
qual formiga caminhando,
a qual basta uma brisa
para ser arrancada
de tudo o que conhece,
de tudo aquilo que se é.
Eu não tinha mais impulso
de andar quase miudo
naquele arame fino
de bamboleio certeiro.
Quede o brilho que eu tinha,
quede força ovacionando?
Quede anseio de aventura
que deixava a assitência,
inquieta, em silêncio?
Quede a vida me chamando?
Quede a vida me chamando?
Tudo isso se passava
em meu medo indomado,
em meus olhos fez morada
a indesejada Morte.
Me senti feita de vidro,
frágil, atarantada, humana.
Despertava em madrugadas,
suada, sobressaltada,
arrancava os cabelos,
gemia, encolhia pernas.
Não sabia pesadelo
ou se estava acordada.
Antes o pavor não vinha,
ao depois pavor pesou.
No rodar de mundo, o circo
retornou à esta cidade
Da lona, fui partejada,
pesando quilos de casos,
com a pele amarrotada
e marcada pelo tempo.
Saí do picadeiro
sem voltar minha visão,
para ignorar a morte
que o risco me gritava.
Parei no portão de casa,
sua avó me recebeu,
disse: eis aqui vossas filhas,
te esperam cochilando.
O vestido que eu usava
ficou pregado à parede,
confundindo aqui dentro
um sentimento esquisito
de que tudo foi um sonho,
vestido não há, nem circo.
vestido não há, nem circo.
Minhas filhas, guardem bem,
que este conto não repito.
........................................................................................................
Esse texto, junto com mais outra versão, foi escrito em 2017 para uma intervenção poética. É uma variação do famoso poema de Carlos Drummond de Andrade 'O CASO DO VESTIDO'.
Como experiência, parti do poema original (me valendo da mesma métrica e quantidade de versos do poeta mineiro, bem como de uma ou outra frase), mas propondo uma origem completamente diferente para o objeto Vestido.
Talvez publique, em outra oportunidade, a segunda experiência que escrevi para esse narrativa-poema-dramaturgia.
Nenhum comentário:
Postar um comentário