Duas imagens
acompanham minha infância, vindas sabe-se lá de que distância do tempo ou do
espaço, repetindo em ondas um anseio: quero um escritório e um laboratório.
Desejava, antes mesmo de saber efetivamente as primeiras letras, que me
formaria em duas profissões, ainda que não soubesse exatamente o que esses dois
faziam. Não eram vontades gêmeas: escrever nasceu primeiro e não gostava da
ideia de ser vontade única. Provavelmente do olhar de espanto diante da
existência, inventei de ser também cientista. Entrava em silêncio reverencioso
no apertado laboratório da escola pública, onde jaziam em potes de vidros
diversos exemplares de cobras e sapos (creio que todo viviam na lama do brejo
que servia de assento à escola).
Quando finalmente fomos morar em
uma casa com um quintal lateral, meu pai providenciou um laboratório feito de
madeiras velhas e papelão. Um resto de estante guardava maçarocas de folhas,
misturas de produtos de limpeza e anotações de observações aleatórias. Naquele
instante, escrever perdeu a força. O que interessava era descobrir do que era
feito o mundo, o que havia além da lua, pensar como alguém vivia em paz sabendo
de nossa pequeneza espacial, de nosso rodopiar do nada ao nada. Era disfarçada
de teologia a filosofia que ameaçava nascer em mim.
Foi quando cheguei ao Fundamental
II, aquele momento da escola em que uma única professora não era o suficiente
para caber todo conhecimento. Surgiram disciplinas que desconhecia: física,
química, biologia. Matemática. A existência dos números em meio ao X, ainda
hoje é, para mim, um absurdo da linguagem. O que tem um X que se meter com
números? A matemática jamais fez parada em mim, no máximo passava correndo,
deixava cair uma ou outra equação que eu teimava em guardar, mas logo acabava
no limbo do esquecimento. E a passagem dos anos só fez piorar minha relação com
o que almejava: embora fosse ainda atraído pela ciência, ela me desprezava, com
seus múltiplos braços numéricos, seus olhos de hipotenusa. A escritura ganhou
velocidade e me encheu de energia, gritando: faça isso.
Muito depois, já fazendo teatro,
estudando artes, rascunhando frases, descobri a poesia. E com ela (prima-irmã
da filosofia que também ganhava corpo), encontrei modos de dar forma aos meus
pasmos. Continuei um investigador, não mais lidando com frações, mas dançando
teorias, sons e figuras. Penso que se tivesse estudado em uma escola de melhor
qualidade; se tivesse mais paciência comigo e com os números; se tivesse outros
tantos Se’s, talvez tivesse me tornado um cientista de exatas, um geólogo,
neurocientista. Não me ocorriam as Ciências Humanas, pois nada que era humano
me parecia passível de se tornar científico. Entendia o ser humano
como meio, isso é, estava entre o absolutamente minúsculo - dos átomos e bactérias
– e o infinitamente gigantesco dos buracos negros e dimensões.
Nem por isso virei a cara para
quem eu queria. Continuei vendo documentários, lendo artigos, livros. Chegaram
a mim as falas afetivas de Carl Segan, Neil deGrasse Tyson e Stephen Hawking, físicos que beiravam a
poesia quando explicavam conceitos; ao lado deles, vieram Haroldo de Campos,
Ferreira Gullar, João Cabral de Melo Neto, poetas da matéria, que por vezes
sopram conceitos científicos. Nessa alquimia descobri que não estava tão longe,
havia uma ligação nessas relações: a escrita nasceu com a ciência, para mim,
dos mesmos assombros. E esse vínculo abarcava, sobretudo, a humana percepção de
saber-se travessia num mistério sem fim.
Talvez seja mesmo infinito o
universo, no entanto não o tempo da vida. Foi em um dia como hoje, 14 de março,
que morreu Stephen Hawking, depois de passar a maior parte da existência
assolado por uma doença que o fechou fisicamente, mas expandiu sua mente para
recônditos do cosmos. Morreu no mesmo dia em que, no Brasil, se comemora (ou já
se comemorou? há o que se comemorar?) o Dia Nacional da Poesia. E esse vínculo,
cogito, deve ser parte da teoria de tudo.
.
.
ps: Hawkins morreu no mesmo dia em
que Marielle Franco foi assassinada em plena luta. Quatro anos em que ecoa a pergunta:
quem mandou matá-la?
.
ps 2: para quem gosta de ler
minhas crônicas, tenho publicado semanalmente crônicas curtas lá no Instagram:
@tadeu_renato
Excelente texto! Penso que um cientista necessariamente precisa também ser um escritor. Não de crônicas e poesias, mas escritor técnico. Eu pessoalmente acho que a escrita é a parte mais difícil da ciência! Por isso admiro demais todos os tipos de escritores, sejam eles cientistas ou não.
ResponderExcluirMuito bom, suas cronicas nos faz refletir.
ResponderExcluir