Tem momentos em que a inspiração
para escrever flui livremente, fica até difícil acalmar as ideias e organizar
as palavras. Em outros, parece haver um vazio, como uma nuvem silenciosa que
fica parada sobre a cabeça sem nem trovejar e nem dar espaço para o sol
aparecer. Tive várias ideias sobre o que escrever este mês. Foram insights nascidos a partir de
documentários geniais que assisti, de livros emancipadores que li, fotos
antigas de família que resgatei, retratadas em uma época que eu não era nem uma
previsão de futuro. Fiz planos de pesquisar e escrever sobre a Guerra de
Canudos e Antônio Conselheiro... peguei e guardei “Os Sertões” por três vezes,
sem passar das primeiras páginas, e no caldo destes estímulos procurei a certidão
de casamentos dos meus avós maternos dos quais percebo hoje, sempre me ocupei
pouco.
“Minha [mãe] era paulista, meu
[avô] baiano”, de Juazeiro. Nunca soube muito sobre ele, sei que era
lavrador e descendente de espanhóis. Para além disso, o pouco que sei começa já na sua história conjunta com a minha
avó, nascida em São Simão, interior de São Paulo, uma mulher negra, filha de
uma geração de filhos de escravos. A certidão de casamento “refere e dá fé”,
que a união civil se deu em 22 de outubro de 1938. Lembro de ouvi-la dizer algumas
vezes, como se não se importasse muito, o preconceito implícito que pairava
sobre seu casamento com um “homem branco de olhos claros”. De qualquer modo,
não sei muito mais além disso, como por exemplo, como se conheceram, as
dificuldades que enfrentaram, embora saiba que não foram poucas, pois eram
muito simples, moraram por muito tempo em fazendas das quais meu avô tomava
conta, tanto em São Paulo quanto no Paraná, e nas quais minha avó trabalhava nas
colheitas. Pelo que sei, foram muito felizes e minha avó sempre expressou
grande saudade da convivência dos dois, já que ele morreu em 04 de janeiro de
1965 quando já moravam no núcleo urbano, em Guarulhos, onde eu nasci. Ainda que
os filhos - com exceção de minha mãe que era criança - já fossem adultos, minha
avó criou netos e bisnetos, lavando roupa para fora. Escrever? Apenas o seu
nome, e em uma grafia muito precária.
Olhar para essa história me fez
pensar na ausência da narrativa escrita, do quanto perdemos de nossas origens
em razão da morte daqueles que as poderiam tão bem relatar, mas que não puderam
a escrever antes, como um registro histórico. Minha avó morreu já em 2009, com
98 anos, quando morávamos em Curitiba e, embora tenha vivido muitos anos ao seu
lado, ela não falava muito do seu passado. Hoje penso isso a partir do silenciamento
da mulher, sobretudo a mulher negra e pobre, como era o seu caso. Uma das
lembranças mais claras que tenho, é que ela sempre falou muito baixo, pra
dentro, dizendo como se não quisesse dizer, guardando tudo para si, e o que
sempre pareceu um traço de personalidade, hoje pra mim soa mais como a internalização
de uma compreensão do papel da mulher que foi construída ao longo de uma
trajetória em que sua voz não era solicitada, pelo contrário, era silenciada.
Foi silenciada pelo pai, que como
ela contava, era rígido e não a deixou frequentar a escola; silenciada pela
obrigação de criar os irmãos quando sua mãe faleceu; silenciada pelo julgamento
por se casar com um homem branco; silenciada inclusive na foto que ilustra este
texto, expresso na tentativa de embranquecer sua pele negra retinta; silenciada
quando não possuía meios de subsistir na metrópole a não ser lavando roupas em
meio às frequentes crises de asma; silenciada em conjunto com uma massa urbana
pobre que habitava os cortiços; silenciada pelas violências sofridas por filhos e
netos; silenciada por não perceber que poderia sim, reclamar, ainda que uma vez
ou outra.
Muito provavelmente esse não
seria o resumo que ela faria de sua vida, é unicamente a minha percepção,
conformada em um contexto completamente diferente daquele em que ela viveu, em
uma tentativa de encontrar uma narrativa que dê conta dessas vidas que hoje se confundem
a tantas outras situadas historicamente e que só fazem sentido quando olhadas por
esta perspectiva. Recontar (muito mal, reconheço) essa história me ocorreu
quando assisti um documentário sobre Clementina de Jesus, “lida” como o “elo
perdido entre a cultura brasileira e as raízes africanas”. Vejo muito de minha
avó ali, suas histórias sobre as músicas cantadas nas fazendas, o costume do
cachimbo partilhado na varanda, o “bater” as roupas no rio, o lenço na cabeça
como proteção e respeito, entre uma gama de outros ritos, linguagens, costumes
e modos de vida que foram se apagando no decorrer do tempo-história e que
somente ela poderia narrar fidedignamente. Mas ouvindo Clementina falar, bem
como as falas sobre Clementina, tive vontade de integrar a essa história afro-brasileira
(que tem se tornado um dos achados mais bonitos da minha vida) a história da
minha avó, e embora não tenhamos o privilégio de ouvi-la falar ainda hoje,
talvez possa ser registrada através do meu olhar, de quem deseja que sua vida
não seja apagada, na tentativa de oferecer, finalmente, direito à sua fala e
toda potência que ela traz para os dias atuais, em que continuamos assistindo a
mesma trajetória se impôr para muitas mulheres negras e pobres, cotidianamente
silenciadas.
Fernanda, você tem a capacidade de trazer para uma narrativa uma mistura rara de força e sensibilidade. Ler seu texto me despertou a vontade de saber mais sobre a história da sua vó, e da minha vó, e de tantas outras mulheres, silenciadas há tanto tempo.
ResponderExcluirObrigada, Carol! Vc sabe que é minha grande incentivadora pra essa nova fase, né?!
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