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sábado, 24 de outubro de 2020

Pulso (um texto sem fim)

Há algo que subsiste à vida e à morte. Algo que está além do que é ser humano e de tudo aquilo que se pode perceber com os sentidos. Um invisível que se embrenha entre os carros em alta velocidade que cortam as avenidas e que também atravessa as pessoas que caminham pelas calçadas. Há “um algo” que justifica a dor, o amor e permeia todos os pensamentos mesmo quando não é pensado. Que não tem som, cor ou cheiro, simplesmente está lá porque, por alguma razão desconhecida, deve estar, e mesmo que não se explique por nenhuma razão que somos capazes de acessar, simplesmente o é.

Algo que dá sabor ao vinho, melodia às músicas, poesia às palavras. Algo que é transcendente e não se materializa pelo trabalho, nem pela tecnologia e que por isso não está em nenhum lugar que se busque, e ao mesmo tempo está em todos os lugares. Mas não tem crença, nem prisão, chega mesmo a ultrapassar o entendimento da fé. Que tece laços e une pessoas, persiste, que sobrevive a tudo, até mesmo ao tempo, porque quanto tempo já se passou desde que “nos tornamos humanos”, transformando hábitos, valores, ordens e castas... quantas coisas passaram e quantas outras apareceram, mas esse algo persistiu, atravessou os séculos. Isso que digo, evoco e não entendo, está além da apreensão dos sentidos e dos significados e por isso não pode ser descrito nem neste e nem em qualquer outro texto, que de tão abstrato nos move e nos traz (inconscientemente?) o desejo de continuar a sentir todo esse inexplicável que é viver, ainda que em sua incompletude.


quinta-feira, 24 de setembro de 2020

Narrativa do silêncio

Tem momentos em que a inspiração para escrever flui livremente, fica até difícil acalmar as ideias e organizar as palavras. Em outros, parece haver um vazio, como uma nuvem silenciosa que fica parada sobre a cabeça sem nem trovejar e nem dar espaço para o sol aparecer. Tive várias ideias sobre o que escrever este mês. Foram insights nascidos a partir de documentários geniais que assisti, de livros emancipadores que li, fotos antigas de família que resgatei, retratadas em uma época que eu não era nem uma previsão de futuro. Fiz planos de pesquisar e escrever sobre a Guerra de Canudos e Antônio Conselheiro... peguei e guardei “Os Sertões” por três vezes, sem passar das primeiras páginas, e no caldo destes estímulos procurei a certidão de casamentos dos meus avós maternos dos quais percebo hoje, sempre me ocupei pouco.

“Minha [mãe] era paulista, meu [avô] baiano”, de Juazeiro. Nunca soube muito sobre ele, sei que era lavrador e descendente de espanhóis. Para além disso, o pouco que sei começa já na sua história conjunta com a minha avó, nascida em São Simão, interior de São Paulo, uma mulher negra, filha de uma geração de filhos de escravos. A certidão de casamento “refere e dá fé”, que a união civil se deu em 22 de outubro de 1938. Lembro de ouvi-la dizer algumas vezes, como se não se importasse muito, o preconceito implícito que pairava sobre seu casamento com um “homem branco de olhos claros”. De qualquer modo, não sei muito mais além disso, como por exemplo, como se conheceram, as dificuldades que enfrentaram, embora saiba que não foram poucas, pois eram muito simples, moraram por muito tempo em fazendas das quais meu avô tomava conta, tanto em São Paulo quanto no Paraná, e nas quais minha avó trabalhava nas colheitas. Pelo que sei, foram muito felizes e minha avó sempre expressou grande saudade da convivência dos dois, já que ele morreu em 04 de janeiro de 1965 quando já moravam no núcleo urbano, em Guarulhos, onde eu nasci. Ainda que os filhos - com exceção de minha mãe que era criança - já fossem adultos, minha avó criou netos e bisnetos, lavando roupa para fora. Escrever? Apenas o seu nome, e em uma grafia muito precária.

Olhar para essa história me fez pensar na ausência da narrativa escrita, do quanto perdemos de nossas origens em razão da morte daqueles que as poderiam tão bem relatar, mas que não puderam a escrever antes, como um registro histórico. Minha avó morreu já em 2009, com 98 anos, quando morávamos em Curitiba e, embora tenha vivido muitos anos ao seu lado, ela não falava muito do seu passado. Hoje penso isso a partir do silenciamento da mulher, sobretudo a mulher negra e pobre, como era o seu caso. Uma das lembranças mais claras que tenho, é que ela sempre falou muito baixo, pra dentro, dizendo como se não quisesse dizer, guardando tudo para si, e o que sempre pareceu um traço de personalidade, hoje pra mim soa mais como a internalização de uma compreensão do papel da mulher que foi construída ao longo de uma trajetória em que sua voz não era solicitada, pelo contrário, era silenciada.

Foi silenciada pelo pai, que como ela contava, era rígido e não a deixou frequentar a escola; silenciada pela obrigação de criar os irmãos quando sua mãe faleceu; silenciada pelo julgamento por se casar com um homem branco; silenciada inclusive na foto que ilustra este texto, expresso na tentativa de embranquecer sua pele negra retinta; silenciada quando não possuía meios de subsistir na metrópole a não ser lavando roupas em meio às frequentes crises de asma; silenciada em conjunto com uma massa urbana pobre que habitava os cortiços; silenciada pelas violências sofridas por filhos e netos; silenciada por não perceber que poderia sim, reclamar, ainda que uma vez ou outra.

Muito provavelmente esse não seria o resumo que ela faria de sua vida, é unicamente a minha percepção, conformada em um contexto completamente diferente daquele em que ela viveu, em uma tentativa de encontrar uma narrativa que dê conta dessas vidas que hoje se confundem a tantas outras situadas historicamente e que só fazem sentido quando olhadas por esta perspectiva. Recontar (muito mal, reconheço) essa história me ocorreu quando assisti um documentário sobre Clementina de Jesus, “lida” como o “elo perdido entre a cultura brasileira e as raízes africanas”. Vejo muito de minha avó ali, suas histórias sobre as músicas cantadas nas fazendas, o costume do cachimbo partilhado na varanda, o “bater” as roupas no rio, o lenço na cabeça como proteção e respeito, entre uma gama de outros ritos, linguagens, costumes e modos de vida que foram se apagando no decorrer do tempo-história e que somente ela poderia narrar fidedignamente. Mas ouvindo Clementina falar, bem como as falas sobre Clementina, tive vontade de integrar a essa história afro-brasileira (que tem se tornado um dos achados mais bonitos da minha vida) a história da minha avó, e embora não tenhamos o privilégio de ouvi-la falar ainda hoje, talvez possa ser registrada através do meu olhar, de quem deseja que sua vida não seja apagada, na tentativa de oferecer, finalmente, direito à sua fala e toda potência que ela traz para os dias atuais, em que continuamos assistindo a mesma trajetória se impôr para muitas mulheres negras e pobres, cotidianamente silenciadas.

sexta-feira, 24 de julho de 2020

As teias da vida

E de repente... ali estávamos nós. Depois de tantos anos nos reencontramos com tal intimidade de quem nunca havia se separado. Foram tantos livros começados, difícil até reordenar as folhas soltas escritas à mão no papel já amarelado. Mas também estavam aqueles “filhos da tecnologia crescente”, impressos, bem grampeados, mas com algumas rasuras feitas em caneta preta com indicação das páginas que deveriam ser reimpressas. Tantos capítulos 1, incontáveis enredos de histórias, o mesmo sobre as personagens bem descritas (idade, cor dos olhos, nacionalidade, ocupação, traços da personalidade)... e que saudade de quando eles ocupavam grande parte dos meus dias nas horas vagas da escola. E eram muitos!

Hoje à tarde todos eles me fizeram companhia, revistei aquela Fernanda que, aos 11 anos, escreveu um romance adolescente (esse terminado!) chamado “Dias de Tempestade”. Também a Fernanda que 1 ou 2 anos depois rascunhou suas primeiras impressões sobre a política brasileira como algo a ser explorado, em um esboço que ainda tem uma linha de título a ser preenchida, e que seria uma história contada durante o Regime Militar. O primeiro capítulo, chamado "Manifestando Idéias" (sim, ainda era acentuado), tomava lugar em 1964, na Praça da Sé, e tinha em seu primeiro parágrafo “Era um domingo de sol, uma barulhenta manifestação reunia estudantes e trabalhadores. Era a época do regime militar, conhecida como Ditadura. Foi uma reunião de decretos, repressão policial e intimidação política. Época em que se modificaram as leis trabalhistas, as censuras teatrais, literárias, e principalmente a imprensa. Foi também aí que apareceram revoltas, comícios para todas as opções e uma grande queda no fim da indústria do café”, sendo que esta última frase aqui grifada, foi atenciosamente colocada entre parênteses com um ponto de interrogação ao lado, como fazem os professores dedicados não somente a corrigir mas, sobretudo, incentivar seus alunos, como o fez minha professora de português na época, a quem pedi uma leitura da minha “mais nova grande obra”.

Hoje, revisitando esse texto, num momento em que venho tentando deixar fluir essa energia criativa engavetada por tantos anos, percebo que a mágica repousa justamente na ingenuidade daquela menina de 13 anos que misturou a Era Vargas com o Regime de 1964. Quanta coisa mudou desde aquela época! Talvez aquela menina nunca pudesse imaginar seus futuros caminhos, não fazia ideia que se dedicaria a estas questões, que o Regime Militar (e a política de uma maneira geral) emergiria com tanta força ao longo dos anos, a ponto de se tornar sua escolha (mais difícil) de vida.

Mas não foi somente isso que veio à tona junto com as memórias e o cheiro das folhas antigas, reencontrei uma Fernanda que acreditava que tudo aquilo era muito importante, aliás, “a coisa mais importante a se fazer na vida”, sentada no fundo de casa, com os cadernos e folhas no colo, inventando inúmeras histórias. Isso significava reinventar-me também, buscar outros lugares, novos mundos, era como criar para mim diferentes personalidades a cada nova personagem, num período da vida em que estamos buscando nos colocar no mundo. O que não podia ser previsto, claro, era que esses papeis se inverteriam, a menina que ingenuamente escrevia sobre o Regime Militar sem ter a mínima noção do que se tratava (para além de perceber aquele período como algo muito odioso que deveria ser discutido) se tornou a mulher que amadureceu tudo aquilo profissionalmente em troca de relegar à prisão a poesia da escrita.