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segunda-feira, 24 de agosto de 2020

Para onde vão as memórias?

Dia desses fiquei observando-a sentada no sofá enquanto atentamente corria a agulha por entre os pontos formados pela linha. Estava fazendo crochê. Fiquei ali por uns quatro minutos, revivendo tempos passados quando ela dedicava-se a algum tipo de artesanato nas pausas de suas tarefas, das quais, muito provavelmente, ela não se lembra mais, e só consegui pensar para onde vão as nossas memórias quando a gente perde a capacidade de lembrá-las. Pensei que talvez elas se percam num limbo metafísico, daquilo que foi e já não é, porque não é acessado senão pelo sentimento, ou talvez fiquem guardadas em algum outro lugar que resiste ao tempo porque conformam concretamente o que somos, e não há maior concretude do que ser, ou não, já não sei. Seria quase o mesmo que pensar para onde vai o tempo que passou, e não faz muita diferença se lembramos ou não dele, mas quando é possível lembrar, de alguma forma ele existe, e se nunca mais for lembrado?
Fiquei pensando nisso ao longo do dia, e só à noite, depois de alguma reflexão, percebi que a resposta dava-se por si mesma, pois têm coisas que nunca se perdem: não era ela quem fazia o crochê, mas sim o contrário. Ela aprendeu com a minha avó, que deve ter aprendido com minha bisavó e assim por diante, e por mais que em algum momento da minha infância eu também tenha aprendido, hoje não me lembro mais como fazer, mas lembro bem da carga afetiva que traziam aqueles momentos em que as gerações se reuniam no quintal de casa para tramarem juntas aquelas peças, e ainda trazem.

Sinto constante necessidade de reconhecer nela vestígios daquela força e criatividade e confesso que ela voltou a fazer crochê por incentivo meu, pois já nem se lembrava dos barbantes esquecidos no armário. Hoje é mais difícil, faz, refaz, faz errado, volta, perde a página da “receita”, me chama pra ajudar, faz de novo e quando volto a “fiscalizar” está no início mais uma vez. Mas apesar da tristeza que sinto ao perceber essas dificuldades, é fascinante ver como as memórias se resgatam naquele fazer em que linha e agulha tramam sua própria história e ancestralidade, resgatando as lembranças daquilo que não se perde porque se transmite pelo amor. Ali, entretida em seu trabalho, por diversas vezes chegou a se lembrar do pai, das tias, dos frutos mais bonitos que ficavam no alto dos pessegueiros e eram difíceis de ser alcançados.

Minha avó fez crochê até uma idade avançada. As últimas peças não ficaram perfeitas como as que havia feito ao longo da vida, a visão já estava dificultada, mas minha mãe as guardou, incapaz de dizer que estavam erradas. Só parou quando a cabeça assim a impôs, não percebia que já não passava a agulha pela linha construindo pontos, simplesmente tomava os bolos de sobras e as enrolava até dizer que estava cansada de fazer crochê, guardava tudo na sacola para dali a quinze minutos voltar a tomar as linhas novamente em suas mãos, como se aquilo fosse a única coisa que preenchesse o vazio de lembranças presentes. Não sei se, ou quando, isso irá acontecer com a minha mãe, temo que vá, mas espero ter tempo bastante para que ela possa continuar a tecer essas tramas que nos ligam de forma tão simples e ao mesmo tempo tão complexa, pra que ela possa seguir enfeitando a sala, o banheiro, meu quarto e a minha vida.

domingo, 16 de agosto de 2020

Andarilhagens




Olho por muito tempo a foto em que muitas crianças estão posadas, roupas de domingo. A segunda menina, da esquerda para a direita, é a minha mãe, que pela cara espevitada não devia estar pensando em futuros filhos, mas na próxima brincadeira que aprontaria. E de tanto olhar o registro, observo quem não aparece na foto: minha vó. Ela está ali, nas roupas limpas, nos cabelos penteados, na bronca para manter a seriedade da molecada. E então a memória e a imaginação (e não seriam elas irmãs gêmeas?) buscam o tempo mais atrás.

Minha vó é menina mineira. Nasceu em Poté, uma cidade bem da pequena, quase chegando ao sul da Bahia. Aquela vila, cercada de montanhas e mata atlântica, é região de extrativismo de pedras preciosas desde épocas imperiais e, portanto, região de trabalho escravo. Região de índios das mais diversas etnias, principalmente dos chamados Botocudos, conhecidos por serem guerreiros brabos. A bisavó da minha vó vivia ali, em condições de escrava. Era uma tal Maria, que era conhecida por ter as pontas de todos os dedos cortados, resultado de cada fuga empreendida em busca da liberdade: cada fuga, um corte. A filha dessa Maria, aquela moça que um dia seria narrada para mim como minha tataravó, chamava-se Jacinta Bernarda de Souza. Nome que achei literariamente lindo desde a primeira vez que ouvi, supondo uma personagem de Machado de Assis.

A Jacinta, filha da Maria, trabalhava no roçado de uma das muitas fazendas que pertenciam a poderosa família Lopes de Oliveira. Pois foi um desses fazendeiros que atentou de maneira diferente para a filha de Jacinta, a caboclinha Rosa. Vai então que a Rosa ficou grávida e o rapaz ficou apaixonado, quis largar família, tradição, propriedade, tudo para ficar com Rosa, que respondeu: não senhor! Eu lá sou mulher de ficar plantada, sendo esposa!? Acho essa resposta forte, vibro com ela, mas desconfio o quanto de ficção há na oralidade que me chegou.

E assim nasceu Edite, minha vó. Menina mineira. Nascida no campo, criada na roça, dividindo a criancice entre o trabalho na terra e as brincadeiras. Distração gostosa era pegar sabugo de milho e fazer bonecas, tão bonitas com seus cabelos cheios . E elas tinham companhia: os bois, cavalos e outros bichos feitos das frutas verdes que se espalhavam pelo chão. Domingo era dia de igreja: a menina Edite já fazia gosto da missa e das festas, adorava seguir procissão, cantar alto para que os anjos ouvissem.

Um dia, a família feita de tantas mulheres precisou deixar a cidade. Edite tinha, então, oito anos. Esse andarilhar por necessidade também carregava um afã de vontade. O trabalho só foi encontrado na outra lateral do país, em Presidente Prudente, cidade beirando o Mato Grosso, que naquela época ainda nem era do sul. Ali, a menina continuou na lida do campo e nas brincadeiras. Vez por outra atravessava um campo aberto conhecido por Deus-me-livre. O nome era por conta de tantos corpos e esqueletos que jaziam naqueles matos, vítima da violência de grileiros contra trabalhadores rurais. De chão em chão, mais uma vez deixaram a cidade e foram para outro Estado, peregrinas que eram. Esse tanto de caminhar, agora penso, talvez não tenham deixado muitos resquícios de festejos na memória da minha vó quando tento me aproximar de suas reminiscências. Ela não fala (não lembra?) sobre músicas, manifestações culturais à parte da Igreja, enredos. Não houve tempo de fixar raízes devido à falta de solo firme. As memórias, em sua maioria, desde a infância, são sempre de trabalho pesado. De mulheres carregando o mundo, mulheres da classe trabalhadora. Aquelas (e aqueles) que de fato ergueram uma nação, que conforme Darcy Ribeiro, não deve ser confundido com o Estado, essa invenção jurídica tão ao gosto patriarcal.

Essa caminhada toda no deserto da História fez com que Maria gerasse Jacinta, que gerou Rosa, que gerou Edite, que gerou minha mãe, que não teve filhas, mas gerou pegadas.