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quarta-feira, 16 de dezembro de 2020

Restos de Ano-Novo

Pintura de Clarice Lispector

Não, não deste último ano-novo. Nem sequer do meu aniversário deste ano, ele também uma notícia. Talvez eu esteja adiantando uma saudade deste que virá depois do eclipse solar, depois  da dança de Saturno com seu filho Júpiter. Não sei por que esta virada ainda por vir me transportou para a minha infância ou tantas outras passagens de dezembro para janeiro. Apesar de sempre desconfiar de que todo ano seja sempre um único ano infinito (que sei eu sobre o infinito? Eu, que mal posso me ater na certeza do próximo carnaval?), sempre tive predileção pelas brincadeiras do fim, os fogos, as ondas e, quando possível, os beijos.  Quando a festa vai se aproximando, como explicar a agitação íntima que ainda me toma? Como se enfim o mundo se abrisse de botão que era em grande rosa escarlate. Como se toda palavra me fosse tomada diante do deslumbre do renascimento simbólico e fosse necessário que eu tomasse de empréstimo frases inteiras lidas no livro Felicidade Clandestina, de Clarice Lispector, edição surrada que um dia pareceu lá me casa. Embora há tempos não escute o velho refrão “...que tudo se realize, no ano que vai nascer”, mesmo hoje uma comoção se faz em mim, como se vozes humanas enfim cantassem a capacidade de prazer desta data.

 Minhas lembranças espocam aleatoriamente, como aquele rojão que já contei em outra crônica. Um que eu segurava com meu avô e que mandou aos céus duas explosões. A terceira fez que não ia, mas decidiu sair com menor pressão através do pavio, quando este estava na mesma linha que meus olhos. Um clarão e meu choro, meu avô desconsolado, eu engolindo meu susto para consolá-lo. Outro brilho e me vejo em uma missa acompanhando minha avó. Ao final, o padre deu a benção e desejou um bom ano-novo: quando é isso? Tive um arrepio quando minha antiga anunciou que era naquela noite. E aí vem mais outra estrela subindo em assobio até o andar que eu morava, adultos na sala, um champanhe estourado e minha mãe, em cima de um banquinho, anunciando que no próximo ano pararia de fumar.

  Ah, está se tornando difícil escrever. Porque sinto como ficarei outra vez ao recordar no mar de Maceió que aquele dois mil e tanto que se iniciaria em poucos minutos seria a primeira chance de me acostumar com um mundo sem meu avô. E esse vai e vem das datas me navega ao choro de minha mãe, quando na tv um show gravado simulava uma farra ao vivo. Porque chora, perguntaram. Pensei que este ano que acabou seria o meu último. Pensei que nunca mais veria essa festa. Nos abraçamos, perdoando a doença que não a havia devastado, aquela que fez com que aquele fosse exatamente sua última celebração. Dela herdei essa inquietação pelo réveillon (tentei fugir desta palavra, contudo preciso de ajuda para dizer o que não sei como) e nos anos seguintes, tive uma secreta vergonha de ter fome deste êxtase.

             Agora chove sobre a cidade e outra chuva de outra cidade de outra época me chama, fazendo com que eu corresse de mãos dadas com minha prima Bia, gritando a felicidade que era presenciar uma garoa inaugurando outra contagem dos dias.  Corremos para o orelhão (naquelas noites havia esse telefone público que pedia um número infinito para ser teclado) para poder desejar um ano imenso para meus ancestrais (naquele tempo havia mais avós). E no dia seguinte - ou em outra existência? – o hábito que havia no interior de passar de casa em casa pedindo um ano bom e ganhar um doce ou uma moeda.

              Este mês que se acaba não vislumbra encontro, talvez nem mesmo uma chuva quente de verão. Há umas tantas doenças levando a alegria de famílias, há um país em desânimo velho, há a distância que não se pode acalmar somente com ligações ou telas. Há a profunda desconfiança de que no correr das horas nada mudará: as marés não trarão uma garrafa de náufrago apregoando uma novidade. Porém, por uma teimosia em nome dos que já o fizeram, ainda  considero olhar para as estrelas à meia-noite e me reconhecer pequeno e eterno naquele instante, regando com uma mínima esperança as plantas do nosso jardim.


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Em novembro passado fui premiado no concurso Abrace Um Autor, do IFSP, pela crônica PESCADAS, publicada aqui neste blog (aliás, a crônica que cito no texto acima). 

sábado, 9 de agosto de 2014

Sobre o medo

Sugestão: ler ouvindo "Pequeno Mapa do Tempo", de Belchior 



Todos nós temos, em um grau ou em outro, algum medo. Quando crianças, temos medo do escuro, do bicho papão, da mãe descobrir que a gente aprontou, do homem do saco. Quando adolescentes, temos medo de levar um fora do/a carinha/mocinha que gostamos, de tirar nota vermelha na escola, de não sermos aceitos no grupo. Quando adultos, temos medo de perder o emprego, de assalto, do fracasso, da solidão.



Algumas pessoas possuem medos estranhos, como de pássaros, de lugares cheios ou apertados ou amplos, de dirigir, de altura, aranha, avião, espíritos, palhaços, etc... 
Aprendi que o medo pode ser benéfico por nos alertar de perigos eminentes. Mas ele também pode ser ruim, quando se torna fator limitante de nossas potencialidades. É claro que o conceito de perigo pode ser bem relativo, assim como a diferença entre o cara prudente e o cagão (sem falar nos medos patológicos).
Lembro de uma frase muito bonita que li uma vez (não lembro a autoria, deve ser Clarice Lispector ou Chico Xavier): "Tenho medos bobos e coragens absurdas".  Deixando a coragem para um outro mês, assumo que tenho vários medos... Um deles é de ETs; um outro é o de não ter tempo suficiente nessa vida pra fazer tudo que desejo - Os desejos também posso compartilhar com vocês no dia nove de algum outro mês.
Outro medo está relacionado com a ameaça que tenho sentido de perder minha liberdade. Podem me chamar de exagerada, mas estou cada dia com maior impressão de que estamos em um Estado de Exceção: Prisões arbitrárias, projetos de lei criminalizando protestos, toque de recolher... Como diz Belchior, "eu tenho medo que chegue a hora que eu tenha que entrar no avião" para me exilar em outro país. Caso seja necessário, já fiz minha escolha: vou pro Uruguai. Bora?

Quer ler mais?
Sobre leis que preveem criminalizar protestos políticos: http://www.brasildefato.com.br/node/27847

quarta-feira, 22 de dezembro de 2010

Reflexão sobre a Vida

Esses dias, eu resolvi fazer algo que vinha prometendo a mim há anos: li A Hora da Estrela. Durante toda a minha graduação – isso há muito tempo –, eu ouvia comentários sobre o jeito que a autora escrevia e também sobre como era bom esse livro. Na época, não fiquei interessado, mas prometi pra mim que um dia leria. E foi o que eu fiz semana passada.

Não sei como dizer, mas ler esse livro fez com que eu repensasse a vida e viajasse no tempo, lembrando da época da faculdade. Conheci tantas Macabéas na vida e nunca tinha me dado conta disso antes. Mas me lembrei bem de uma, um rosto que me marcou muito. Curioso, né? Justamente o rosto de uma garota sem rosto. Todo dia ao entrar na sala, eu via a garota sentada, esperando a aula começar. No rosto dela, nem ansiedade nem tédio – um rosto vazio, que não demonstrava nada. Do começo ao fim da aula, aquela mesma expressão, ou melhor, não-expressão. Todos tinham um grupo de colegas, todo mundo encontrava compatibilidade com outra pessoa. Menos ela. Sempre sozinha. Chegava antes de todos e ia embora por último, nunca ouvi a voz dela.

Até poderia descrever essa menina, mas não tem um porquê de fazer isso. Ela pode ser qualquer pessoa que passa por aí na rua, olhando pro nada, físico igual ao de todas as outras garotas que também não têm uma personalidade destacada. Assim como Macabéa, ela não fazia diferença pro mundo. Eu imaginava como era a relação dela com os pais – eles a amavam, lhe davam carinho? Imaginei o que fazia na sua casa – ouvia música, via filmes? Não, eu tinha certeza que não. A arte a sufocaria, ela talvez nem fosse inteligente para compreendê-la. Ela devia escrever poesia, uma letra torta e rimas pobres, devia escrever sobre como se sentia sozinha e como isso um dia mudaria.

Não pude deixar de pensar: será que mudou? Como disse, faz tempo que me graduei, desde então eu nunca mais a vi. Mas ela devia estar por aí, andando com a sua blusa rosa no braço, segurando os seus livros, olhando sempre sem levantar a cabeça. Aí, também tive que me perguntar: será que ter vivido fez diferença pra ela? E também me perguntei: será que fez diferença pra mim? Por que então eu me lembrei dessa garota? Eu até acharia que é porque foi dela que lembrei, mas acho que no fundo tem um motivo mais egoísta. Saber que ela era assim e que é assim até hoje provavelmente me afirma como alguém melhor do que ela – tive amigos, vivi bem, experimentei muitas coisas novas, amei alguém. Nunca fui a pessoa sem sal que ela foi nem deixei de me fazer notar. Hoje tô repensando a vida, buscando validade nas coisas que fiz – e tenho dó dela, que provavelmente nunca poderá repensar a vida que nunca teve.

(Vale esclarecer que, para esse texto, é preciso diferenciar autor do narrador. Tal como Machado de Assis ao compor Dom Casmurro - ele, autor; Bentinho, narrador -, o mesmo processo se aplica aqui)