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domingo, 27 de dezembro de 2020

Não pode dançar?

Esses dias revi o remake de Footloose. Tenho uma queda por filmes em que as pessoas dançam. É uma pena, porém, que muitos deles tenham roteiro tão batido e previsível porque dançar não deveria estar limitado a competições. Footloose não é sobre concurso, embora seja um típico filme de comédia romântica adolescente com roteiro pouco original.

A trama se passa numa cidadezinha do interior americano que decidiu proibir festas e danças. A morte de um grupo de adolescentes depois do baile foi o estopim para acirrar ainda mais a moral religiosa dos habitantes da cidade que culminou na curiosa lei. Mas tudo muda quando um rapaz forasteiro chega e se rebela.

Fora o asco que tenho dessa relação promíscua entre Estado e religião, me chamou a atenção o discurso que o moço revoltoso fez ao tentar persuadir o conselho a revogar a tal lei. Ele dizia apaixonado que os jovens tinham o direito de se divertir, de fazer besteira, de ser irresponsáveis porque era esse o momento da vida em que estavam. Usando a própria linguagem dos seus interlocutores, cita a passagem da bíblia cristã em que diz “Para tudo há uma ocasião, e um tempo para cada propósito debaixo do céu: (...) tempo de chorar e tempo de rir, tempo de prantear e tempo de dançar”. Completa afirmando que ele compreendia a preocupação dos pais porque é isso o que fazem os adultos: se preocupam. Se em breve seriam eles a ocupar esse lugar da preocupação, então não seria justo dar a eles o direito de curtir antes de tudo isso?

Fiquei refletindo sobre o quão triste e cruel é esse pensamento que permeia não apenas a sociedade americana, mas a brasileira também (felizmente em menor grau), mas ainda assim presente. É como se tudo de divertido, interessante, novo só pudesse ser vivido durante a juventude. Quem viveu, viveu, quem não aproveitou, perdeu. Vida adulta feliz e realizada só se tiver casado com filhos e ter dinheiro o suficiente para ostentar.

Por mais que se reflita sobre a arbitrariedade de tudo isso é difícil se livrar desse conceito. Não é por acaso que não se vê muitos adultos aprendendo novas habilidades ou mesmo vivendo experiências novas que não tenham uma finalidade utilitária. Pra quê aprender caligrafia? Pra quê você vai aprender a andar de patins agora? Pra quê você vai ler um livro sobre astronomia? Aulas de canto, rapel, balada? Nessa idade?!

Curioso que ao mesmo tempo que reina uma ideia de que não devemos ser pessoas entediantes também existe uma ridicularização de adultos e idosos aprendendo coisas novas. Não tenho muita esperança de que o mundo saia melhor dessa pandemia, mas desejo sinceramente que as pessoas, incluindo eu mesma, se libertem das amarras mentais que colocam um prazo de validade na diversão, na aventura, no sonho. Não precisamos ser gênios para poder realizar qualquer atividade. Não precisamos ganhar concursos de dança para poder dançar.


segunda-feira, 9 de novembro de 2020

Dia de finados

Diferente do que pode-se supor, o dia de finados não me remete à tristeza, ou sofrimento. Pelo contrário, tenho memórias afetivas muito alegres com o dia de finados.

Mas antes de falar do dia de finados estabelecido no Brasil em 2 de novembro, quero falar sobre a ideia de um dia específico para prestar homenagem aos mortos. 
A parte japonesa da minha família tem influência budista e comemora o dia de finados em outra data, 14 de julho, conhecido por Obon¹. E utilizei o termo "comemora" de propósito, porque é isso mesmo, uma festa! Muita comida gostosa, reunião de todos os parentes, conversas alegres e abraços carinhosos. É isso que me vem à cabeça quando penso em Obon, além dos rituais de acender senkô, oferecer comida e rezar para os antepassados. 
Esta vivência me mostrou uma forma diferente -mais alegre- de lidar com a morte e com os mortos.

Mesmo do lado brasileiro, o dia de finados era divertido. Isso porque minha avó materna mora bem perto de um grande cemitério da Z/L de São Paulo, e, antigamente, a rua de sua casa, assim como um trecho da avenida do cemitério, ficavam fechadas para carros, e abertas para pedestres. Ambas as vias são muitíssimo movimentadas, com trânsito de ônibus, inclusive, mas, ao menos uma vez por ano -no dia de finados- podíamos brincar livremente, sem risco de atropelamento, tão temido por minha avó.
Em minhas memórias, era um cenário quase idílico. Sol, alegria, barracas e vendedores ambulantes de flores, de pintinhos coloridos², brinquedos e muitos cacarecos. Gostava de brincar com as outras crianças de pega-pega, rouba bandeira e descer a rua de patins ou em carrinho de rolimã emprestado. E isso só era possível no dia de finados, quando a rua ficava colorida e ironicamente aberta para a vida. Essas pessoas estava indo ao cemitério visitar os túmulos de pessoas queridas que se foram, mas não me lembro de ver ninguém chorando. 
As crianças têm um mundo particular, e nesse mundo, o dia de finados era de brincadeiras e alegrias.

O tempo passou, eu cresci, e as ruas não são mais restritas aos carros no dia de finados. No entanto, surgiu um novo motivo para eu amar esse dia, o nascimento do meu sobrinho! Continuamos comemorando a vida em dois de novembro!!!  

E você, que lembranças tem do dia de finados? Você ou sua família homenageia os falecidos? De que forma?










1- Obon é uma tradição budista para consagrar os antepassados. O festival Obon é o segundo maior feriado japonês e pode durar 3 dias ou mais, variando em cada região. Nesta época (em julho, no calendário antigo ou agosto, no calendário atual) os espíritos dos ancestrais retornam ao mundo para visitar suas famílias, e os japoneses os recebem acendendo insensos (senkô) e rezando em altares domésticos (hotokesama).

2- Quando criança eu não tinha consciência, mas esses pintinhos coloridos vendidos em feiras sofriam maus tratos, inclusive intoxicação pelas tintas spray utilizadas para deixá-los mais atrativos, e por isso muitos morriam poucos dias após serem comprados. Além de toda questão ética por trás disso, hoje essa prática configura crime de maus-tratos, previsto no artigo 32 da Lei 9.605 de 1998, com pena de 3 meses a 1 ano. 

domingo, 28 de novembro de 2010

O invisível e o curioso

Nossas vidas são construidas através de imagens. Momentos que vivemos, que gostariamos de viver, coisas que foram inseridas em nosso cotidiano sem nos darmos conta. São esses resquícios que, em comunhão as impressões que sobram depois da experimentação, formam as visões de mundo, o caráter e constróem nosso repertório.

Muitas vezes não somos nós que juntamos todas essas fagulhas e transformamos em coisas palpáveis, pertinentes com a rotina necessária para nosso reconhecimento em sociedade. Somos também moldados por tudo que nos é dito, repassado, direcionado. A vivência de outrém muito interessa na constituição do sujeito. Para sermos indivíduos, precisamos nos rechear de coletividade.

Nesse contexto, observe a cidade de Mariana. Basta uma semana experimentando o lugar para que toda a bagagem que carregamos seja brutalmente modificada. Por trás dos casarões coloniais, das igrejas barrocas e de todo imaginário setecentista existe uma cidade comum, com problemas de infra-estrutura, com a rispidez dos moradores, com pobreza e violência.

A verdade é que a fuga é algo constante em todos. Lidar com problemas diariamente não é simples. A fluidez e a velocidade de tudo que nos cerca é, ao pé da letra, um labirinto. Assim, imaginar a paz interiorana e a perfeição barroca é uma espécie de fuga. Então fugimos. Para Mariana, para o colo da mãe. Paz de espírito é o "sonho da casa própria" da conteporâneidade.

Toda essa reflexão serve para amarrar um outro lugar de fuga, objeto de nossa pesquisa. Lugar que pode ser invisível ao desatento e inútil ao descrente. Escondida no fundo de um quintal, atrás de um supermercado e poluida por toda movimentação de um centro urbano, está a Ermida De São Geraldo. Construida em 1916, a capelinha é imponente para quem a descobre. Traz consigo pinturas em afresco, um jardim com árvores frutiferas, um pequeno lago com carpas e paz no meio do caos do centro da cidade. Existe ainda um mito: um provável osso do santo padroeiro, que aumenta a peculiaridade do lugar.

A São Geraldo Magela, padroeiro das mães e dos alfaiates, é atribuida uma qualidade aterradora, na ordem do super poder mesmo, a capacidade de ser bilocate, ou seja, estar em dois lugares ao mesmo tempo. Foi canonizado depois de uma vida humilde e injusta, com falsas acusações e a rejeição da própria Igreja Católica.

Mas foi um outro Geraldo o responsável pela construção do santuário. Geraldo Carneiro, que nos fundos da sua casa, segundo tradições passadas, ergueu a capela em homenagem ao santo homônimo. Desde então está aberta para visitação. E é muito visitada. Uma missa é realizada toda segunda-feira, excursões de outros lugares são promovidas e existe até um coral que lá se apresenta. E é estranho perceber que muitas pessoas conhecem o que você ainda não havia nem notado. Culpa da visão, que é usada apenas como sentido: ver. Já o olhar, que compreende uma especificidade muito mais humanizada, quase sempre sofre um revés no dia-a-dia das pessoas.

Uma vez dentro da ermida, a sensação de paz é imediata. Um estranho silêncio toma conta do lugar (que está no meio da eloquência dos pontos de ôbibus, comércios e trânsito efervescente, e ainda assim é silencioso), e só é interrompido pelo barulho de uma bica d'água, que só faz relaxar ainda mais.

Ao longo do tempo, as acomodações da capela vieram sofrendo ajustes. Aumentou de tamanho, anexou um sepulcro de Bom Jesus, abriu uma pequena loja de artigos religiosos. Tem fruta no pé, sombra, água de dois tipos: de mina e benta. Tem conforto religioso, para os crentes e conforto espiritual, para os necessitados.

O portão encoberto por plantas que mostra apenas um corredor estreito, e nada convidativo, esconde esse refúgio. Um refúgio que não faz propaganda. Que você só consegue fazer parte dele se receber um chamado boca a boca ou se tiver a curiosidade.

Mais do que uma entrada, o beco funciona como um portal. Depois de atravessá-lo, a primeira pessoa a ser vista é Seu José Efigênio, tratado por Zezé, uma espécie de zelador-faz-tudo da ermida. Acende vela, varre o chão, tira as folhagens e ainda vende imagens de santo na lojinha.

Apesar de muito solícito, Zezé diz que trabalha lá somente há dois anos. Logo, nossas questões não foram de cara respondidas, o que serviu de fermento para nossas pequenas dúvidas. Assim, começaram dois novos exercícios: observar e deduzir. Observar todas as faces que por lá passavam – os olhos fechados, os dedos pulando as contas do terço, sinal da cruz. Deduzir as angústias – as amarguras pelas quais essas pessoas buscavam conforto - ou as graças alcançadas, as bênçãos recebidas. Esses todos são mistérios, frutos também da nossa curiosidade.

É, no mínimo, um lugar diferente. Causa um sentimento estranho, de não pertencimento, e parece ser exigido que pertençamos a cada passo à dentro da instalação. É o incômodo do novo, misturado com o constrangimento do primeiro dia de aula em uma turma diferente. As coisas não estão óbvias. Não existe nada escancarado. Uma hipótese formada: talvez essa seja a prova de fogo para o conforto que os frequentadores assíduos parecem desfrutar.

E a boa resposta é aquela que gera mais dúvidas e, portanto, nos deixa mais curiosos. A curiosidade é algo muito difícil de se lidar. Ela é recompensada com o conhecimento. Porém, para alcançarmos esse resultado, é necessário antes que sejam derrubadas muitas barreiras, preconceitos e mitos já bem resolvidos em nosso repertório. Esse confronto é constrangedor, uma espécie de catarse.

E as perguntas ainda não foram respondidas. E tomara que nunca sejam. Pois quando se trata do homem, a simetria não é uma regra. E a certeza é só uma manifestação da preguiça de ser curioso.


Por Enrico Mencarelli e Tábata Romero


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