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sábado, 28 de maio de 2016

a violência banalizada

*Links no final do artigo

Em tempos de extremos, é comum tirar os agressores de sua condição humana, colocando-os no patamar de monstros e doentes. Também é comum o outro lado da moeda tentar silenciar discussões a respeito, por questão de não assumir sua pretensão de justificar o injustificável. Não há nada que legitime um estupro, que desculpe uma morte. E quando isto ocorre aos milhares?

Para ilustrar isto, vamos voltar à época da Alemanha nazista, o exemplo clássico.

Justificar o holocausto era justificar o injustificável. Para tanto, os debates a respeito eram proibidos. A classe média em peso apoiou esta medida. O holocausto era brutal, e um debate mostraria a fragilidade disto. Logo, tanto para a população quanto para o governo, era preferível coibir a discussão e o pensamento a respeito, do que assumir a brutalidade de seus atos, de sua conivência.

Hannah Arendt, ao acompanhar o julgamento de Adolf Eichmann, falou que esperava encontrar um monstro, mas, no final, o que encontrou foi um homem comum, um burocrata preocupado apenas em seguir ordens, nenhum questionamento. Um homem, como tantos outros, colocado em uma situação de violência generalizada e banalização do sofrimento – que deu brecha para o pior que há no ser humano. Ao declarar isto, chegou a ser rechaçada pela comunidade judaica, como se estivesse perdoando Eichmann por seus atos quando, na verdade, além de apoiar a punição do assassino, também apontava o sistema que o gerava.


Em 2015, o tema do ENEM foi “A persistência da violência contra a mulher na sociedade brasileira”. Tema atual, mas pouco discutido, seja em âmbito familiar, seja no ambiente escolar. A alegação para evitar discutir violência de gênero é a mesma usada para bloquear a discussão a respeito da diversidade sexual (tema igualmente importante): família, moral, bons costumes, “mimimi”, valores, vitimismo... 

A sociedade brasileira tem uma certa resistência a discutir a violência contra a mulher pelos mesmos motivos que a Alemanha nazista evitava discutir o holocausto: ocorre, mas somos coniventes. É preferível culpar a vítima e, adotar medidas para esconder os sintomas do que atacar o problema em si.


Para a mídia o homem mata por amor, por ciúmes. Nunca porque tem ódio e acha que a mulher tem que ser subordinada às suas vontades. A maioria dos crimes contra a mulher ocorre no âmbito familiar, ou com conhecidos próximos da vítima: homens que cresceram acreditando que tinham direito sobre o corpo desta, sobretudo quando ela não se encaixava em algum padrão – e convém ressaltar, estupro não se trata de sexo. Por mais que se tente romantizar, estupro é uma agressão com base na dominação, é uma relação de poder.

Essa distorção do que é a violência contra a mulher, somado a outros fatores como a culpabilização da vítima, falta de espaço para discussões sérias a respeito do tema (e o sistemático silenciamento, perseguição e ridicularização de quem dá a cara a tapa) formam o ambiente propício para o surgimento de indivíduos que praticam atos abusivos sem considerar suas consequências, uma vez que a vítima, para eles, é um objeto.

Recentemente uma jovem de 16 anos foi vítima de um estupro coletivo, 33 homens. A violência do ato era tão naturalizada para os agressores, que eles se sentiram não apenas no direito de “punir” (sic) a garota como também de expor isto, gravaram e colocaram na internet para apreciação. Vingança, traição ou tipo de vida: o motivo não interessa, o que aconteceu foi uma monstruosidade.

Costumamos colocar indivíduos que cometem atos de barbárie numa categoria à parte da humana. Ao retirar a qualidade de humanos, também abstraímos a responsabilidade por seus atos. Porque não queremos assumir que, como nós, estes seres também são pessoas, e fruto dos valores disseminados em uma época. Que “aquilo” existiu porque uma parcela da sociedade e/ou governo foi conivente, quando não apoiador. O que muitos não percebem é que a monstruosidade não é necessariamente o produto de um humano isolado, mas é mantida por um sistema.

Não é questão de absolver criminosos. Que eles paguem por seus crimes. Entretanto, o mal maior não está na presença de doentes e desequilibrados mentais que se divertem com o sofrimento alheio. O mal maior, a banalização, está na violência sistemática, cotidiana. Estupradores são monstros? Doentes? Cometem monstruosidades, de fato. Mas ato de barbárie maior é a naturalidade com que cometem a violência.
Retirar estupradores da categoria de monstros nos tira o prazer do ódio desmedido, mas isto é importante. É importante porque o ódio é uma ferramenta de manipulação, que nos cega e nos leva a apoiar medidas extremas. 

É o ódio que leva uma multidão a ficar histérica quando vê alguém de vermelho passar na rua, ameaçando e atacando; é o que leva fanáticos a matarem homossexuais; é o que leva uma multidão, com um falso boato, a linchar uma mulher inocente; é o que nos faz achar que a violência é uma medida corretiva coerente; é o que permite que Bolsonaros e Felicianos se multipliquem.

A manipulação do medo alimenta a onda conservadora. O temor e o ódio geram propostas que nem sempre são condizentes com a realidade, que não alterarão em nada o status quo, apenas aliviarão a sensação de risco e servirão a um ódio irracional.  

Já é possível visualizar medidas extremas sendo propostas, como porte de armas, pena de morte, castração química... porque nem sempre é fácil olhar além e perceber que o problema não reside apenas no assassino, no estuprador – está nos superiores de mãos limpas que alimentam um sistema que permite que pessoas banais reproduzam atos brutais. 






[MULHER É ESTUPRADA...]



[MULHER É MORTA...]




[MULHER É AGREDIDA...]


segunda-feira, 22 de abril de 2013

No dia em que Júlia nasceu...

o milagre que salva o mundo, a esfera dos negócios humanos, de sua ruína normal e natural é, em última análise, o fato do nascimento, no qual a faculdade de agir se radica ontologiamente. Em outras palavras, é o nascimento de novos seres humanos e o novo começo, a ação de que são capazes em virtude de terem nascido. Só o pleno exercício dessa capacidade pode conferir aos negócios humanos fé e esperança (...). Esta fé e esta esperança no mundo talvez nunca tenham sido expressas de modo tão sucinto e glorioso como nas breves palavras com as quais os Evangelhos anunciaram a "boa nova": "Nasceu uma criança entre nós". 
(Arendt, Hannah, in A Condição Humana)


No dia em que Júlia nasceu, homens barbados se digladiavam por quase nada. Nações ricas impunham seu domínio sobre nações pobres, ficando aquelas ainda mais ricas e estas ainda mais pobres. Ditadores botavam medo no Oriente e falsos democratas enojavam o Ocidente. No dia em que Júlia nasceu, liberdades individuais eram postas em xeque por pessoas que se colocavam acima do bem e do mal. Ter era visto como religião para muitos ao passo que ser era coisa de pouco valor.

No dia em que Júlia nasceu, pessoas morriam de inanição para que outras pudessem morrer de obesidade. No dia em Júlia nasceu, a televisão só passava telenovelas, mas muitos pensavam estar assistindo telejornais. No dia em que Júlia nasceu, se vendiam panfletos em bancas de jornal, mas muitos pensavam estar consumindo importantes periódicos.

No dia em que Júlia nasceu, rios eram poluídos, florestas eram destruídas e o ar ficava cada vez mais irrespirável nas grandes cidades. Animais eram traficados e o homem ia se trancando cada vez mais em seu próprio cativeiro.

No dia em que Júlia nasceu, pessoas atravessaram a rua para não ter que cumprimentar alguém que vinha pelo sentido oposto. No dia em que Júlia nasceu, muitas pessoas foram adicionadas, mas muito poucas foram abraçadas. Muitas ideias foram curtidas, mas muito poucas foram aplaudidas. No dia em que Júlia nasceu, a tolerância era vista como a maior das virtudes e o amor como utopia distante.

Mas alheia a tudo isso, apesar de tudo isso, resistindo a tudo isso, Júlia nasceu.

E com ela nasceu o Novo. Uma nova chance. Porque todo bebê que nasce carrega consigo um bocado de esperança...

***

Não se preocupe, pequena Júlia. Não quero colocar em seus frágeis ombros o peso de mudar o mundo. Mas quero que compreenda que a mudança começa a cada pequeno novo passo. E chegou a sua vez de iniciar mais uma nova caminhada...

Não se apequene, pequena Júlia. O mundo agora também é seu...