Em tempos de extremos, é comum
tirar os agressores de sua condição humana, colocando-os no patamar de monstros
e doentes. Também é comum o outro lado da moeda tentar silenciar discussões a
respeito, por questão de não assumir sua pretensão de justificar o
injustificável. Não há nada que legitime um estupro, que desculpe uma morte. E quando
isto ocorre aos milhares?
Para ilustrar isto, vamos voltar
à época da Alemanha nazista, o exemplo clássico.
Justificar o holocausto era
justificar o injustificável. Para tanto, os debates a respeito eram proibidos.
A classe média em peso apoiou esta medida. O holocausto era brutal, e um debate mostraria a fragilidade disto. Logo,
tanto para a população quanto para o governo, era preferível coibir a discussão
e o pensamento a respeito, do que assumir a brutalidade de seus atos, de sua
conivência.
Hannah Arendt, ao acompanhar o
julgamento de Adolf Eichmann, falou que esperava encontrar um monstro, mas, no
final, o que encontrou foi um homem comum, um burocrata preocupado apenas em
seguir ordens, nenhum questionamento. Um homem, como tantos outros, colocado em
uma situação de violência generalizada e banalização do sofrimento – que deu
brecha para o pior que há no ser humano. Ao declarar isto, chegou a ser rechaçada
pela comunidade judaica, como se estivesse perdoando Eichmann por seus atos
quando, na verdade, além de apoiar a punição do assassino, também apontava o
sistema que o gerava.
Em 2015, o tema do ENEM foi “A
persistência da violência contra a mulher na sociedade brasileira”. Tema atual,
mas pouco discutido, seja em âmbito familiar, seja no ambiente escolar. A alegação para evitar discutir violência de gênero é a mesma usada para bloquear a discussão a respeito da diversidade
sexual (tema igualmente importante): família, moral, bons costumes, “mimimi”,
valores, vitimismo...
A sociedade brasileira tem uma
certa resistência a discutir a violência contra a mulher pelos mesmos motivos
que a Alemanha nazista evitava discutir o holocausto: ocorre, mas somos
coniventes. É preferível culpar a vítima e, adotar medidas para esconder os sintomas do que atacar o problema em si.
Para a mídia o homem mata por
amor, por ciúmes. Nunca porque tem ódio e acha que a mulher tem que ser
subordinada às suas vontades. A maioria dos crimes contra a mulher ocorre no
âmbito familiar, ou com conhecidos próximos da vítima: homens que cresceram
acreditando que tinham direito sobre o corpo desta, sobretudo quando ela não se
encaixava em algum padrão – e convém ressaltar, estupro não se trata de sexo.
Por mais que se tente romantizar, estupro é uma agressão com base na dominação, é uma relação de poder.
Essa distorção do que é a violência
contra a mulher, somado a outros fatores como a culpabilização da vítima, falta de espaço para discussões sérias a
respeito do tema (e o sistemático silenciamento, perseguição e ridicularização de
quem dá a cara a tapa) formam o ambiente propício para o surgimento de
indivíduos que praticam atos abusivos sem considerar suas consequências, uma
vez que a vítima, para eles, é um objeto.
Recentemente uma jovem de 16 anos
foi vítima de um estupro coletivo, 33 homens. A violência do ato era tão
naturalizada para os agressores, que eles se sentiram não apenas no direito de
“punir” (sic) a garota como também de expor isto, gravaram e colocaram na
internet para apreciação. Vingança, traição ou tipo de vida: o motivo não
interessa, o que aconteceu foi uma monstruosidade.
Costumamos colocar indivíduos que
cometem atos de barbárie numa categoria à parte da humana. Ao retirar a
qualidade de humanos, também abstraímos a responsabilidade por seus atos. Porque
não queremos assumir que, como nós, estes seres também são pessoas, e fruto dos
valores disseminados em uma época. Que “aquilo” existiu porque uma parcela da
sociedade e/ou governo foi conivente, quando não apoiador. O que muitos não
percebem é que a monstruosidade não é necessariamente o produto de um humano isolado, mas é mantida por um sistema.
Não é questão de absolver
criminosos. Que eles paguem por seus crimes. Entretanto, o mal maior não está
na presença de doentes e desequilibrados mentais que se divertem com o
sofrimento alheio. O mal maior, a banalização, está na violência sistemática,
cotidiana. Estupradores são monstros? Doentes? Cometem monstruosidades, de fato. Mas ato
de barbárie maior é a naturalidade com que cometem a violência.
Retirar estupradores da categoria
de monstros nos tira o prazer do ódio desmedido, mas isto é importante. É
importante porque o ódio é uma ferramenta de manipulação, que nos cega e nos
leva a apoiar medidas extremas.
É o ódio que leva uma multidão a ficar
histérica quando vê alguém de vermelho passar na rua, ameaçando e atacando; é o
que leva fanáticos a matarem homossexuais; é o que leva uma multidão, com um falso
boato, a linchar uma mulher inocente; é o que nos faz achar que a violência é uma medida corretiva coerente; é o que permite que Bolsonaros e
Felicianos se multipliquem.
A manipulação do medo alimenta a onda conservadora. O temor e o ódio geram propostas que nem sempre são
condizentes com a realidade, que não alterarão em nada o status quo, apenas
aliviarão a sensação de risco e servirão a um ódio irracional. Já é possível visualizar medidas extremas sendo
propostas, como porte de armas, pena de morte, castração química... porque nem
sempre é fácil olhar além e perceber que o problema não reside apenas no assassino, no estuprador – está nos superiores de mãos limpas que alimentam um sistema que
permite que pessoas banais reproduzam atos brutais.
Depois de fazer planos de não ficar por aqui durante os
festejos, lá estava eu botando o bloco nas ruas do Rio de Janeiro mais uma vez.
Apesar do corpo já não responder da mesma forma que antes
aos efeitos do sol de 40º, mais os pulos de alegria e mais as várias
cervejinhas geladas, o espírito ainda se alegra com o sentimento contagiante de
felicidade. Acho tão legal e democrático ver jovens, crianças e idosos com
fantasias e durante os 4 dias serem quem eles quiserem. Alegria única da gente
de toda parte, seja do asfalto ou do morro – que foi feito de samba.
Mesmo com todos os problemas, (que ficam em segundo plano
nessa época, esperando a quarta-feira de cinzas para voltarem) vejo que
realmente não há nada igual nessa cidade, do leme ao pontal e cada vez me
apaixono mais.
Mesmo quando toda a folia estiver sumindo no horizonte, sei
que ainda terei a lua deserta do arpoador para vagar, quando as meninas do
Leblon não olharem mais para mim porque eu uso óculos.
Mesmo quando eu me sinto tão sozinho, posso dar um pulinho
ali em ipa e ver ela passar e o mundo inteiro se encher de graça, com o seu
doce balanço a caminho do mar. Aí pra casa eu demoro a voltar ainda mais se um
samba escutar. “É que o samba pega que nem
feitiço e quando me pega eu enguiço, só
saio quando acabar. Eu vou pra Gamboa e de lá vou pra Lapa, aí o bom senso me escapa
- Amor eu não sei como evitar. Eu subo a colina e pra minha surpresaalguém diz em Santa Tereza, que o dia já vai clarear.”
Na Praça da Play-Boy ou em
Niterói,
Na fazenda Chumbada ou no
Coez. Quitungo, Guaporé, nos locais do Jacaré, Taquara, Furna e Faz-quem-quer. Barata, Cidade de Deus, Borel e a Gambá, Marechal, Urucânia, Irajá, Cosmorana, Guadalupe, Sangue-areia e Pombal, Vigário Geral, Rocinha e Vidigal. Coronel, Mutuapira, Itaguaí e Sacy. Andaraí, Iriri, Salgueiro, Catiri, Engenho novo, Gramacho, Méier, Inhaúma, Arará, Vila Aliança, Mineira, Mangueira e a Vintém, Na Posse e Madureira, Nilópolis, Xerém Ou em qualquer lugar, eu vou te admirar.
Hoje fez um dia lindo no Rio de Janeiro. Um sábado de sol reluzente e céu bem azul. Me disseram pois não vi. Passei a tarde toda num hospital.
Fui apenas refazer um exame de sangue que tinha feito na quarta-feira para confirmar os efeitos da picada daquele mosquitinho sacana que voa por aí fantasiado de branco e preto.
Entre a minha chegada e todas as outras etapas passaram se quatro horas e meia.
A maior parte do tempo passei sentado, lendo Um estranho no ninho e escutando um tipo de bingo de nomes narrados por um computador com sotaque lusitano.
As cenas foram todas tristes; Várias senhoras precisando de atendimento, pessoas que foram assaltadas e agredidas, gente com dor e várias outras querendo atenção para suas enfermidades.
Durante a espera, o seu nome é chamado várias vezes numa tela com a indicação de onde você precisa ir. Você fala com várias pessoas e nenhuma delas toca em você, inclusive o médico que escuta os seus sintomas olhando para a tela do computador e digitando tudo sem parar.
Em horas como essa você fica frágil com a situação e triste com de tudo o que vê. Sem o peso dos 28 anos eu penso alto:
- Eu só queria minha mãe.
Mas nessas horas também você se sente humano ao extremo, se coloca no patamar de todas as outras pessoas independente de qualquer coisa. A dor e a doença nivelam.
Ao sair do hospital ainda escuto uma das atendentes dizer que é uma afronta trazer Copa do mundo e Olimpíadas para o Brasil na situação que a saúde se encontra. Eu concordo e saio.
Nessa hora o sol do dia bonito no Rio se foi, mas lá de dentro, entre sangue, tubos e agulhas, eu imaginei a praia, o mar, as ondas e pensei que tudo poderia ser pior.
Ao voltar para meu livro leio “a imaginação é capaz de atravessar qualquer prisão”.