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quarta-feira, 16 de junho de 2021

Assombro

O Quarto Azul - Pablo Picasso

    A fotografia mostrava um grupo de pessoas em frente a uma mercearia. Estavam sérios, firmes, semblantes fixados em uma determinada máscara que deve ter permanecido por algum tempo, uma vez que os processos fotográficos eram demorados no início do século XX. Suponho que quando o fotógrafo deu por encerrada a ação, a pose se desfez e os sorrisos retornaram a seus lugares, as brincadeira seguiram seus caminhos e os meninos fizeram graça com o cheiro que existia no ar enquanto se faziam estátuas. No entanto, não foram os corpos estancados na entrada do comércio, observando o fotógrafo – e, portanto, a mim – que me dispararam para além do registro, mas uma sombra, o vulto quase inexpressivo andando no lado de dentro do imóvel, a pessoa que por algum motivo não se colocou diante da máquina de parar o tempo. Uma forma que lembrava uma mulher de cabelos dançantes . Foi o corpo em movimento que me fez pensar: todos ali já estão mortos. Em seu livro “ A Câmara Clara”, Roland Barthes vai chamar esse detalhe disparador de punctum, essa quase-nada de acontecimento que faz abrir uma espécie de ferida na percepção (detalhe que depende de cada observador), nos alçando para o que a fotografia não mostra. Nunca mais encontrei essa fotografia, guardada apenas na minha lembrança de vê-la em uma exposição, o que a torna intáctil como o fantasma de um fantasma. Talvez tenha sido justamente isso que tenha me arremessado da mancha de uma pessoa animada para o pensamento sobre a finitude: eu estava vendo fantasmas.

    Ver fantasmas era um desejo quando criança. Nenhum desejo pela adrenalina que o medo pode dar, nunca fui fã de filmes de terror ou suspense. Uma curiosidade investigativa que sempre me acompanhou queria ter certeza das histórias que ouvia de amigos e familiares. Toda gente tem uma narrativa sobre visões do incógnito e eu duvidava. A chance veio quando morávamos na escola, meus pais zelando pelo prédio. Era moda naquele momento (e creio que nunca saiu) a tal Loira que habitava as paredes do banheiro feminino. Bastava alguns ritos – que variam em cada escola – para que a aparição surgisse e causasse arrepios de fazer virar a vítima dos avessos. Pior ainda se seu surgimento fosse percebido através do espelho: capaz do encarnado enlouquecer. Ousado – mas com uma dose razoável de temor –, planejei a experiência: na tarde de domingo adentraria o banheiro, faria todo o chamamento e encararia a Loira (penso quantas vezes tremi ao encarar uma menina naquela época), resolvendo duas curiosidades: ver assombração e descobrir o reservado onde só as meninas podiam entrar: seria diferente do nosso? Haveria que tipos de escritos nas paredes? Haveria paredes? E janelas? Sim, havia uma janela alta por onde entravam os últimos indícios do dia. Dei descarga três vezes, cinco voltas em torno de mim, risquei uma palavra no espelho, fechei o olho e fiquei próximo da porta. Desejava o encontro, contudo estava pronto para fugir quando acontecesse (e agora penso nas meninas que vinham falar comigo e minha voz fraquejava). Abri os olhos e para um misto de decepção e contentamento, não havia fantasma e minha desconfiança seguia intacta.

    De verdade, eu queria esse encontro com o além do plano mais imediato do cotidiano, que me acontecesse um único desses sustos nômades a adentrar os entardeceres da infância. E embora nada tenha acontecido, desconfio que da possibilidade de fazer brotar uma mulher vista através do espelho, com seu olhos de esfinge, nasceu esse compasso de espera atento ao espanto. Não qualquer espanto,  não esses sobressaltos noticiosos que desabam sobre nós todas as horas e que, assim como uma palavra repetida diversas vezes, deixam de fazer sentido, mas algo como o assombro de relembrar a finitude de tudo ou como uma súbita paixão por uma passante seguindo por trás dos que posam para retratos.

quarta-feira, 20 de abril de 2016

Isso é hora para fotografia?

Para mim a fotografia é um hobby recente e intenso. Faz apenas seis anos que comprei uma câmera digital, três que comprei uma Canon semiprofissional e desde então costumo dizer que não vou viajar, mas levo minha câmera para novos lugares.

Fico dividido quando ouço alguém dizendo que as pessoas tiram tantas fotos que até se esquecem de aproveitar uma viagem. Por um lado concordo. Me aborreço quando vejo um mar de paus de selfie disparando a esmo, registrando os mesmos sorrisos dezenas de vezes, acumulando fotos que serão esquecidas no fundo de algum HD. Por outro lado, tenho que defender meu hobby.

Fotografar pode ser muito mais que apertar um botão. Registrar uma paisagem bonita em um pequeno retângulo implica em identificar exatamente o que faz com que essa paisagem seja agradável, quais os elementos protagonistas e quais os figurantes.

Principalmente quando estou em um lugar desconhecido e com a câmera por perto, busco instintivamente uma boa foto, que já está lá, parada, a espera de um clique. Na contramão da ideia de dar atenção à fotografia e esquecer da viagem, buscar uma foto me faz olhar com mais atenção ao que me cerca.

Ver algo que vale a pena fotografar me obriga a parar, pensar em qual o melhor ângulo, como deve ser o enquadramento, o que deve aparecer na foto e o que deve ser omitido. Muitas vezes inclinar a câmera alguns milímetros faz toda a diferença na hora de esconder uma placa de trânsito, um emaranhado de fios, um carro estacionado, etc.

Não é tão raro eu implicar com a iluminação natural do lugar. Isso me faz, quando possível, voltar em outro horário, em que o sol incida por outro ângulo e ressalte as cores que a primeira vista estavam ocultas por sombras. Isso é algo que só a fotografia pode me oferecer.

É evidente que com a facilidade das máquinas digitais, a quantidade de fotografias ruins aumentou. Se você tem apenas 24 fotos para fazer durante uma viagem vai selecionar bem o que quer registrar, porém a facilidade de registrar milhares de fotos em um pequeno cartão de memória também facilita bastante na hora de buscar uma boa imagem.

Temos o direito de errar ‘n’ vezes, testar o melhor ângulo, fazer montagens – que podem ser bem mais criativas do que fingir que segura a torre de Pisa –, aderir à moda de reencenar fotos antigas e ver a ação do tempo, fazer pequenos stop motions trabalhosos e divertidos, etc.

Para além da diversão, existe também uma relevância histórica para as fotografias. Várias cidades europeias foram reconstruídas após a guerra com base em registros fotográficos, o uso profissional faz com que a análise de uma foto possa substituir uma longa e desgastante viagem para uma análise presencial, além da junção de fotografias digitais com a internet, que facilitou absurdamente o contato com o que não podemos conferir pessoalmente.

O exagero existe sempre e não atinge somente as fotografias. Assim como ainda existem pessoas que atendem ao celular dentro do teatro ou enquanto dirigem, existem pessoas que insistem em tirar foto em local inapropriado, sem nem se dar conta de que estão atrapalhando muita gente para conseguir uma foto ruim e sem sentido. É um ônus superado pelo bônus.

Acho um grande privilégio poder andar com uma máquina fotográfica no bolso, com um filme infinito que é revelado no instante do clique. Alguns lamentam que não existem mais a expectativa pela foto revelada, a espera para ver o resultado, etc. Eu nunca entendi muito bem esse saudosismo pela angústia, mas de qualquer forma acho um preço muito baixo a pagar pelo benefício da fotografia disseminada com extrema facilidade.

terça-feira, 22 de abril de 2014

O Fotógrafo: Uma história no Afeganistão

Uma fotografia não é apenas uma imagem imortalizada no papel. Uma fotografia também é o seu fotógrafo. Uma mesma imagem pode ser fotografada de infinitas maneiras dependendo de quem a fotografa, dependendo da intenção e das motivações do fotógrafo. Podem-se variar ângulos, enquadramentos, intensidade de luz, foco e por ai vai. E é por esse aspecto humano, pela alma do fotógrafo que carrega em si, que a fotografia é considerada uma forma de arte, tal qual seus irmãos, o cinema, o teatro, a pintura e, não me venham com preconceitos, a história em quadrinhos.

A lógica é a mesma. Experimente fazer o exercício de ler uma história em quadrinhos com o olhar de um camera man (lembre-se que um vídeo nada mais é do que uma sequência de fotografias). Sim, imagine que está com uma câmera invisível nas mãos! Você perceberá que de uma cena a outra precisará fazer arranjos com sua câmera invisível para poder acompanhar a dinâmica da história. Em alguns momentos terá que usar o seu "zoom" imaginário para mostrar uma cena panorâmica ou para mostrar detalhes do rosto de um personagem. Às vezes terá que mudar o ângulo para poder mostrar o personagem sendo visto de cima pra baixo, de baixo pra cima, de viés, de frente, etc. Nada disso é por acaso, assim como não é por acaso (ou não deveria ser) a ordem com que um escritor vai apresentando as tramas de seu romance ou a paleta de cores que um artista utiliza para compor sua pintura. Tudo é e deve ser intencional e a maneira como se arranja essas variáveis é o que faz cada obra ganhar a marca registrada do artista, sua personalidade.

As artes, como se vê, são expressões interdependentes da alma humana. Elas se prestam harmoniosamente umas às outras. Sendo assim, por que não misturá-las de uma vez por todas, de maneira explicita e sem medo de ser feliz? O quadrinista Guibert, o fotógrafo Didier Lefèvre e o colorista Lemercier, todos franceses, encararam este desafio e o resultado ficou nada menos do que genial. A série de três livros intitulada "O Fotógrafo - Uma História no Afeganistão" (Editora Conrad, 2010) registra com maestria a viagem que Lefèvre fez ao país asiático em 1986, momento no qual os afegãos estavam sob a tensão da invasão soviética ao país, acompanhado da comitiva da Médicos sem Fronteiras. O grande mérito deste trabalho em conjunto é o de intercalar história em quadrinhos e fotografia de maneira perfeitamente harmoniosa, fazendo com que o relato transformado em quadrinho se complemente e ganhe mais verissimilhança acompanhado da fotografia.

Recordem-se que eu disse que uma fotografia também é o seu fotógrafo. Pois bem, Lefèvre estava num país em guerra, caminhando dias sem fim em caravanas precárias, vendo de perto pessoas morrendo, vitimadas pelo horror dos bombardeios. Entretanto, isso não é mostrado na fotografia de Lefèvre da maneira estereotipada com a qual a história oficial nos acostumou. Lefèvre busca mostrar as pessoas comuns do Afeganistão, com seus sonhos e inseguranças, além das paisagens que fazem do país um dos mais bonitos do mundo, segundo ele. Didier não é irresponsável ao ponto de extirpar os problemas do país, mas tem o mérito de mostrar que não é só isso, que o Afeganistão não é sinônimo de guerra ou que até mesmo no meio da guerra é possível se enxergar a beleza.

Em suma, "O Fotógrafo" é uma série que eu estava relutante a ler, mas que foi um dos meus grandes achados recentes. Mais um que recomendo!