sexta-feira, 24 de janeiro de 2020

Sobre os aniversários...

Os sapatos que antes ocupavam as prateleiras na despensa agora repousavam em qualquer pequeno espaço do quarto; as roupas sujas amontoavam-se escondidas atrás do móvel grande, enquanto as xícaras, copos e panelas na cozinha precisavam ser procurados dia a dia diante da necessidade do uso, já que poderiam estar em qualquer lugar. Há algum tempo a casa andava sem ordem. Era preciso lembrar do tempo, do espaço, do ontem, do anteontem e do banho de agora.
Passava apressada de um lado pro outro, tentando organizar o que fosse possível antes de ir trabalhar, recapitulando as obrigações diárias, o artigo a ser concluído, as datas das próximas reuniões, as compras a serem feitas no mercado, a próxima consulta médica da minha mãe, a torneira que precisava ser consertada, a cama velha que implorava ser trocada... ressentida pelo tempo que eu não tinha. Enquanto andava de um lado para o outro da casa, preocupada com o atraso, o ônibus que passaria dali a 20 minutos - que, caso perdido, imputaria a pena de esperar por outro mais ou menos uns 50 minutos - fechei, pelo menos por cinco vezes, a porta do armário-depósito que ficava embaixo da escada “Preciso trocar essa fechadura”. Dei alguns passos e a porta abriu novamente.
Instantaneamente parei na intenção de voltar para fechá-la de novo, mas permaneci imóvel. O tempo, a casa, as memórias, o passado, o presente e futuro de repente fundiram-se em uma grade névoa escura e densa que parecia pairar sobre a minha cabeça e me dei conta de que era meu aniversário. Voltei alguns passos ainda de costas em direção ao armário e a porta estava ali, entreaberta, como se debochasse da minha falta de atenção, do meu desleixo, do meu cansaço. Quis fechá-la, juro que quis, mas subitamente a abri e percebi que havia esquecido completamente do que tinha lá dentro.
Num primeiro momento só avistei caixas, entulhos, coisas quebradas que estavam amontoadas há anos esperando conserto, poeira, fios e cabos elétricos que eu já não fazia a menor ideia de onde eram. Mas ali, escondidos atrás de tudo aquilo, estavam meus cadernos antigos em que eu escrevia minhas histórias, os trabalhos da escola que ela havia guardado com tanto carinho, o vestido e sapatinhos do meu batizado que “depois que eu morrer você pode dar um fim”, os bonés antigos do meu pai, os álbuns de fotografia... enfim, estava tudo ali ainda, imóvel diante de um tempo que passa sem trégua, carregando tudo, mesmo quando você implora que ainda tem muita coisa boa pra tirar daquele momento. Ele não tem freio. No armário ainda estavam guardados todos os sentimentos acumulados (e ali compactados) de uma vida toda, de um passado que ainda era mais aconchegante e amoroso. E eu os conhecia todos, acompanhavam-me dia a dia diante da tarefa de continuar, de projetar e alcançar sonhos para na sequência desfazê-los em razão da urgência da vida; acompanhavam-me na solidão, no cuidado crescente para com a minha mãe (os papeis estavam invertendo-se), do medo de não conseguir, do cansaço da repetição dos menores detalhes. Mas ali, guardados no armário, estes sentimentos pareciam sorrir enquanto diziam que não precisavam doer, e que tudo bem que hoje ainda ferissem, amanhã e talvez depois de amanhã, mas que eles só precisavam de mim para serem ressignificados.
Olhei com pesar e tentei acolher todos eles em meus braços; por um momento tive gana de abrir todas aquelas caixas, desentulhar, desembaralhar, separar o que estava quebrado, procurar todos os velhos cartões de aniversários e sorrir pelos 35 anos de idade que se aproximavam, encontrar a força das mulheres da minha família que ultrapassaram tantos e tantos limites para ressoar em mim, trazer o ímpeto de reinventar sonhos, sorrir para o mundo, mas... tão instintivamente quanto parei para abrir a porta daquele armário, lembrei-me que o ônibus passaria dali a “uns 10 minutos, acho” e saí apressada, não sem antes beijá-la carinhosamente e perguntar o que ela queria para o jantar enquanto assistia sua autossatisfação por encontrar “amor” na revista de caça-palavras.

segunda-feira, 20 de janeiro de 2020

Só Bolsonaro não decepciona



Lá se foi 2019. Sabíamos desde 2018 que seria um ano de amargar, mas nutri algumas esperanças, ao menos para ter onde me apegar. Que ilusão.

Acreditei que a justiça resolveria o assassinato de Marielle Franco, mas hoje faz 677 dias que me pergunto quem é o mandante do crime e quais as razões.

Pensei que eventualmente o PSDB acordaria do delírio de uma oposição irresponsável, que resultou em patéticos 4,76% dos votos para a candidatura milionária de Alckmin, mas seguem culpando o PT até pelos problemas de São Paulo, que governam desde 1995.

Quem sabe a grande mídia não aprenderia, ainda que na porrada – por enquanto simbólica – a importância de uma cobertura honesta dos fatos, mas continuam varrendo para baixo do tapete as injustiças que vêm cometendo desde a articulação do golpe.

Talvez a própria população caísse na real depois que a “Vaza Jato” escancarou o óbvio. Sergio Moro, pintado como acima do bem e do mal, tinha lado, viés, interesse pessoal e fez muita gente de trouxa. Mas o escândalo só serviu para domesticá-lo e deixa-lo na coleirinha pelo presidente.

Os nacionalistas decerto se revoltariam ao saber que Paulo Guedes gostaria de vender até o Palácio do Planalto. Que nacionalistas são esses, dispostos e destruir o país e aceitar o sucateamento da ciência, pilar de sustentação de qualquer país? Mas basta uma demão de verde e amarelo para o mundo permanecer cor-de-rosa.

Não adianta. Há pouco mais de um ano, só Bolsonaro não me decepciona. O presidente me lembra um episódio do Chaves, quando o Prof. Girafales, didático como só um professor pode ser, diz o que parece caber como uma luva no representante do Planalto:

“Talvez a vocês o trabalho dele parece tolo, inútil, comum, vulgar. Sim. Concordo. Mas é que devem levar em conta que se trata de um indivíduo sem nenhum preparo. De um pobre diabo que nem sequer concluiu o primário. De um pobre infeliz que mal aprendeu a ler e a escrever. De um reles... de um joão-ninguém...”

E correspondendo, finalmente, às minhas expectativas, surge Bolsonaro cumprindo o que dele se espera. Um trabalho patético, subserviente, entreguista e submisso, em uma realidade paralela, onde o comunismo é uma ameaça e os Estados Unidos a solução.

Cansei de ter esperança. Para 2020 minha única expectativa é a do governo patético de um pateta. Não é bem algo em que posso me apegar, mas na atual conjuntura, evitar frustrações já é um passo importante.

quarta-feira, 15 de janeiro de 2020

Na terra da rainha

O título desse post talvez faça você pensar que eu vou escrever sobre o Megxit. Especialmente porque estou escrevendo logo após a rainha Elizabeth ter rompido o seu silêncio e se pronunciado a favor da decisão do neto. 

Para você que não sabe o que é Megxit, uma breve explicação: o príncipe Harry é casado com a atriz Meghan Markle. Há alguns dias os dois decidiram se afastar da realeza, renunciando o salário que recebem em busca de independência financeira. Nobre decisão. O termo Megxit, é um trocadilho com o Brexit (saída do UK da união europeia).

Sinto decepcionar, mas não falarei sobre Megxit. Entretanto, recomendo aos interessados a leitura de um texto da BBC: https://www.bbc.com/portuguese/internacional-51071090

Esse post está inaugurando a minha chegada ao Blog das 30 pessoas. Confesso que estou extremamente empolgada com essa aventura de escrever para um blog pela primeira vez. Ok, mas o que isso tem a ver com a terra da rainha? Bem, eu morei um ano em Manchester, na Inglaterra. Foi uma das experiências mais incríveis da minha vida! Foi tão bacana que acho digno de compartilhar com o máximo de pessoas possíveis. Por isso, os 12 posts que farei ao longo desse ano serão todos relacionados à minha experiência lá fora, na terra da rainha.

Para começar, vou contar como fui parar lá. Desde menina sempre tive o sonho de fazer intercâmbio. Pensei em fazer high school nos EUA, ser Au Pair, trabalhar na Disney, estudar inglês, entre outras coisas. 

Um belo dia uma colega de trabalho me marcou num desses posts do Facebook. O post anunciava a abertura de inscrições para uma bolsa de estudos chamada Chevening. Era a oportunidade da minha vida! Isso porque o governo britânico estava se propondo a financiar um mestrado full time para pessoas com potencial de liderança e networking. O processo seletivo é árduo, mas vale MUITO a pena. Primeiro, porque a bolsa financia TUDO, tudo mesmo (visto, passagens aéreas, as mensalidades do curso, e ainda te dão um dinheirinho mensalmente). Segundo, porque a experiencia de viver no Reino Unido, de estudar lá, de conhecer gente de todos os cantos do mundo, muda a vida de alguém para sempre. Mudou a minha.

Ao contrário da Megan que deseja sair, eu daria tudo para voltar. Explico o porquê nos próximos posts.

Abraços,
Jacqueline.

quinta-feira, 9 de janeiro de 2020

O dia em que quebrei os dentes

Em um sábado a tarde muito gostoso e ensolarado, recebi uns amigos em casa. Histórias, risadas, ideias, churrasco e cerveja até a noite. No final da noite acompanhei os amigos até o portão para me despedir. Eles se foram, eu fechei o portão e estava voltando para casa. Do portão até a casa há um longo corredor de cimento, com uma leve inclinação ascendente. Não sei até hoje o porquê (não tinha pressa, nem vontade de ir ao banheiro, nem apostando corrida e muito menos tinha deixado a panela no fogo), mas decidi subir correndo. 
Estava de chinelo, tropecei, e caí. De cara, ou melhor, de boca no chão. Além da boca e do nariz, ralei o joelho. Doeu, mas levantei rapidamente, preocupada em não ter sido flagrada em um momento tão vexatório. Olhei para os lados, nenhuma testemunha. "Ufa", pensei aliviada, quase sorrindo. Resolvi que já tinha sido o suficiente para o dia e fui dormir. 
Naquele horário em que você ainda não sabe se ainda é madrugada ou se já é manhã, acordei com a urgência do xixi. Após me aliviar, lavei as mãos e levei o maior susto ao me deparar, no espelho, com uma cara toda arrebentada! E os dois dentes da frente quebrados!!! DOIS!!! DA FRENTE!!! 
Não podia acreditar. Voltei para a cama e fiquei pensando que eu tinha arrebentado minha cara, que eu tinha que ser cancelada, que 2019 tinha que acabar logo, antes que eu falecesse... Comecei a chorar de arrependimento e humilhação e meu companheiro acordou, preocupado, com o choro. "Que merda será que eu fiz?" foi seu primeiro pensamento. Eu, chorosa, contei o motivo das lágrimas. Ele primeiro ficou aliviado por não ter feito nenhuma merda, em seguida tentou ver meu rosto sem sucesso, pois o quarto estava escuro, mas me abraçou e disse coisas reconfortantes, fui me acalmando e voltamos a dormir.
Ao acordar pela segunda vez, ainda arrependida, porém pragmática, tentei recuperar a história, porque não, eu não consegui me recordar onde eu tinha caído. Depois de um tempo eu lembrei, e fomos no corredor, procurar os pedaços de dentes, mas não achamos nada. Mandei uma mensagem pra minha irmã, que é dentista e agendou consulta para o dia seguinte, uma segunda-feira antevéspera de natal. No dia seguinte já estava com os dentes reconstituídos e com a satisfação de poder passar o natal em família sem precisar cobrir a boca, apesar dos ferimentos. Foi até engraçado ficar com a "janelinha" no dente por um dia (meu companheiro disse que achou bonitinho, coisas de casal), mas foi terrível e não desejo isso pra ninguém legal. 
"Mas porque você não colocou os braços na frente para proteger o rosto?" Você pode me perguntar. Algumas pessoas de fato me perguntaram isso, e a resposta é muito simples, meus amigos: Minha irmã é dentista, não ortopedista!  
Além da janelinha, ganhei lábios
que deixariam Angelina Jolie com inveja




sexta-feira, 27 de dezembro de 2019

2019, o ano da coragem

2019 cumpriu sua promessa. Acompanhar as notícias de jornal virou uma espécie de tortura, uma sequência de catástrofes, mortes, desmatamento, desemprego, empobrecimento, todo o tipo de ameaça ao bem-estar presente e futuro da maioria da população.

Outro dia no Twitter rolou uma "corrente" na qual os usuários contariam sobre as coisas boas que lhe ocorreram neste ano. Algumas pessoas ficaram ofendidas porque não haveria espaço para celebrar nada num ano tão marcado pela destruição.

Minha percepção é que se assolou no país uma tristeza generalizada. Mesmo para aqueles que se identificam com o fascismo, ninguém me parece alegre ou satisfeito. Fora isso, temos o bom e velho capitalismo que exige cada vez mais das pessoas eficiência e dedicação plena à vida profissional. A competição extremada do mercado de trabalho gera angústia e instabilidade emocional. Muitas pessoas não conseguem sequer cultivar um hobby ou mesmo usufruir do seu tempo livre sem se preocupar em fazer algo útil.

A Companhia das Letras publicou uma palestra provocativa do Ailton Krenak chamada "Ideias para adiar o fim do mundo". Deixo aqui minha indicação de leitura para este final de ano. Fiquei muito tocada com o texto porque ele foi de encontro às minhas angústias com o fim do mundo cada vez mais próximo. 

Assim como eu, muitas pessoas se desesperam com o colapso ambiental e a luta homérica contra as injustiças sociais que parece não ter fim. O desespero leva ao pânico. Acho que é sobre isso quando o Ailton fala que não sabe se os brancos vão aguentar o fim do mundo. Mais de 500 anos desde a invasão portuguesa, mais de 500 anos desde o fim do mundo e ainda existem diversos povos indígenas no Brasil. E como eles resistiram?

Uma possível leitura é que eles resistiram criando sentido de viver em sociedade, gozando do prazer de estar vivo. Resistiram a ordem de integrar o "mundo dos zumbis", não permitiram que seus corpos ficassem tristes. Como disse o filósofo Deleuze, o poder necessita da tristeza porque é assim que consegue dominar: é pela alegria que temos potência de criar e resistir.

Termino o ano com essa reflexão: a urgência de recuperar a alegria de viver e a coragem para enfrentar a vida. Quando o mundo estiver pesado demais é preciso empurrá-lo de volta pra cima e respirar fundo. Se estamos nos encaminhando para o fim do mundo, podemos ao menos tentar adiá-lo como sugere o Ailton Krenak.

domingo, 22 de dezembro de 2019

Melhores livros lidos em 2019

Quem me conhece um pouco, sabe que sou apaixonado por literatura e por livros. Quem me conhece um pouquinho mais, certamente saberá que também sou um esquisito admirador de listas. Assim, não posso deixar de juntar estas duas paixões e, pelo terceiro ano consecutivo, publicar minha lista de melhores leituras do ano. Nunca é demais repetir que não se trata de uma lista de livros publicados em 2019, mas de livros cuja leitura fiz neste ano coxinha que já está terminando.

Minha lista é bastante tendenciosa. Nos últimos 4 anos meus interesses têm se voltado bastante para literatura brasileira e hispano-americana contemporânea, de modo que isso se reflete aqui também. De tempos em tempos, é claro, também leio autores mais clássicos (e dois deles se fazem presentes aqui), mas preciso dizer que são minoria. Bom, mas vamos à lista (que não segue ordem alguma)!

A uruguaia e Uma noite com Sabrina Love, ambos de Pedro Mairal (Argentina) - Mairal tem um grande poder de nos fazer empatizar com seus personagens e seus dramas. Não dá pra largar seus livros depois que lemos a primeira linha. É uma prosa viciante, com diálogos e reflexões com os quais gostaríamos de participar, de falar junto, torcendo por seus personagens, seja o quarentão Lucas Pereyra, tentando resolver seus inúmeros problemas pessoais enquanto deambula pelas ruas de Montevidéu, seja o adolescente Daniel Montero, em sua saga para chegar a Buenos Aires para passar uma noite com Sabrina Love, a estrela do canal pornô que sorteou seu nome, entre milhares, como nos programas de auditório tão comuns nos países latino-americanos.

A vegetariana, de Han Kang (Coréia do Sul) - Baita livro, o primeiro de uma escritora sul-coreana que li na vida. A grande questão de A vegetariana é mostrar o quanto as pessoas se sentem no direito de intervir em escolhas individuais alheias (sobretudo se envolvem corpos femininos, sobretudo em sociedades conservadoras - assim, tipo a brasileira). O livro é dividido em 3 partes, cada qual com um narrador distinto, cada um com uma narrativa acerca do fato da protagonista ter se tornado vegetariana. A grande sacada do livro é que nenhuma dessas narradoras é a própria protagonista. Só sabemos o que falam dela, nunca o que ela fala de si própria.

Sombrio Ermo Turvo, de Verônica Stigger (Brasil) Este livro é uma aula de escrita em forma de contos. Nenhum deles passa perto de qualquer convencionalismo e sempre deixam o leitor com o disjuntor caído ao final. Mais um baita livro de Verônica Stigger!

O amor nos tempos do cólera, de Gabriel García Marquez (Colômbia) - Gabo é pra se ler em voz alta, sentindo o sabor de cada palavra. Este talvez seja seu livro mais poético, a história do amor obstinado de Florentino Ariza, que precisa esperar 50 anos para poder se declarar para Fermina Daza. Um grande tratado sobre o amor que, ao contrário de outros livros do gênero, não cai uma linha sequer em qualquer tipo de pieguice. 

Nocilla Experience, de Augustín Fernandez Mallo (Espanha) - Mallo se auto-declara representante de uma "literatura móvel" ou fluida. Em Nocilla Experience (que compõe com Nocilla Dream e Nocilla Lab uma trilogia) temos exatamente isso, trata-se de uma coleção de textos curtos, altamente povoados de ícones da cultura Pop - Nocilla nada mais é que a Nutella espanhola) que permitem uma leitura quando tomados isoladamente (quando vistos de perto, digamos, como quando nos aproximamos de um quadro) e uma outra leitura quando lidos em conjunto (quando vistos de longe).

Alguma Poesia, de Carlos Drummond de Andrade (Brasil) - Este ano resolvi parar de ler os poemas de Drummond no modo aleatório e lê-los de modo mais sistemático (não que seja ruim ler aleatoriamente, mas quis fazer essa experiência), lendo os 7 primeiros livros dele, de "Alguma Poesia" até "Fazendeiro do Ar". Poderia escolher qualquer um para estar aqui, mas escolho o primeiro, aquele que tem as bases da poesia de Drummond e que reúne os poemas que ouvi desde sempre, como "Poema de Sete Faces", "No meio do caminho", "Cidadezinha qualquer" e "Quadrilha".

O teatro da rotina, de Alex Xavier (Brasil) - Da nova safra de ótimos escritores brasileiros, Alex Xavier tem um repertório infinito de procedimentos narrativos em seus contos, onde consegue extrair o fantástico de situações mais rotineiras. 

Bonsai A vida secreta das árvores, de Alejandro Zambra (Chile) - Os dois primeiros livros de Zambra já tiveram edições separadas pela Cosac e agora aparecem em edição única pela Tusquets. Além de ambos terem a figura de árvores como referência, também tratam igualmente de desencontros amorosos. Além disso, os dois livros são narrativas curtas, de linguagem muito potente, que vale por si só. A primeira passagem de "Bonsai" já nos diz que a literatura de Zambra busca muito mais uma linguagem do que um grande tema: "No final ela morre e ele fica sozinho, ainda que na verdade ele já tivesse ficado sozinho muitos anos antes da morte dela, de Emilia. Digamos que ela se chama ou se chamava Emilia e que ele se chama, se chamava e continua se chamando Julio. Julio e Emilia. No final, Emilia morre e Julio não morre. O resto é literatura".

E você, quais foram seus livros favoritos de 2019? Cite aí nos comentários (nem precisa dizer o motivo...rs).

sexta-feira, 20 de dezembro de 2019

Especial de Natal

Sobre o Natal guardo desde a infância a memória de uma época de paz, confraternização e a família quase se engalfinhando por conta da uva passa no arroz. Isso no fim dos anos 80. Os argumentos de cada lado eram defendidos com fervor, enquanto eu ficava pensando por que não fazer duas travessas de arroz separadas.

No fim dos anos 90 o debate anual seguia firme e forte, porém, entre uma uva arremessada nas costas do tio Alcínio e uma pimenta maldosamente mocozada no prato da tia Anísia, alguém resolveu elogiar a privatização da Vale do Rio Doce e da Telebrás, concluindo que isso acabaria com a roubalheira.

O debate foi acalorado, sem conclusão, mas intenso o suficiente para tirar o foco das pequenas pérolas negras que adornavam o arroz. Foi um marco. A primeira quebra no monopólio da discórdia.

Uma década mais tarde eu já tinha idade para participar das discussões, mas mantive minhas raízes de neutralidade. Mantinha minha passividade suíça em meio à guerra. Acreditava que a lenga-lenga da uva passa seria superada pela maçã que apareceu na maionese, mas alguém lembrou que, contrariando as expectativas do começo da década, o governo do PT vinha fazendo um bom trabalho.

Com a picanha na churrasqueira, teve gente que lembrou do mensalão e, com um copo de caipirinha na mão, chamou o Lula de cachaceiro. A Dilma foi chamada de feia, para desespero da minha prima, que fez um árduo discurso sobre o machismo do falso argumento.

Ano passado a coisa ficou mais tensa. Cheguei a acreditar que algumas questões fossem para as vias de fato. Entre promessas passadas, não cumpridas, e promessas para o futuro, impossíveis de serem cumpridas, as uvas passas até adoçaram um pouco, à contragosto de alguns, aquela ceia amarga.

E chegamos ao paradoxal 2019, que passou voando apesar de parecer ter 487 meses. A ceia de Natal passou a ser combinada pelo grupo de família no Whatsapp. Era tradição que a primeira exigência fosse as uvas passas no arroz, seguido do primeiro protesto, contra a presença das bolinhas negras da discórdia.

Neste ano a primeira pergunta sobre a ceia foi respondida com um “Quem votou no Bolsonaro que leve a carne”, seguido de “Não vou em ceia com quem defende presidiário”. O primeiro áudio veio depois que alguém perguntou “E cadê o Queiroz?”; mais vexatório que o gemidão do Whatsapp foi ouvir o tio Alcínio gritando “TÁ NO SEU CU, FILHO DA PUTA!”.

É a primeira vez em décadas que as uvas não são sequer mencionadas. Se por um lado as brigas familiares têm sido intensificadas nos últimos anos, fica o consolo de que com o tempo até a uva passa.

segunda-feira, 9 de dezembro de 2019

A parte boa

2019 foi ~está sendo~ um ano desgraçado de muitas formas.

Para não chorar enquanto escrevo, nem para deprimir ninguém - e o dia chuvoso está ótimo para uma melancolia - pensei em fazer um exercício pessoal de gratidão.

Sem esquecer as lutas, porque elas são diárias; sem esquecer as perdas, porque elas são reais; sem esquecer os crimes, as injustiças, os percalços, os retrocessos; sem esquecer os nossos e os mais oprimidos, quero lembrar algumas coisas boas que aconteceram comigo em 2019. 

Esse fim de semana participei de uma oficina na qual a facilitador fez uma rodada de apresentação na qual perguntava seu nome, sua motivação para fazer a oficina e algo pelo que você é grata. Quando pensei em "pelo que sou grata" hoje, a primeira coisa que me veio à mente foram os gatinhos que moram comigo. Oliver, com sua ternura infinita e suas visitas diárias, abriu nossos corações para receber em nossa casa, esse ano, duas gatinhas que precisavam de um novo lar... Rami-Sati e Nuala. Nem preciso dizer aqui o quanto os animais são generosos, incríveis e maravilhosos, e têm a capacidade de mudar nossas vidas, né? Mas digo mesmo assim porque eles merecem essa exaltação!

Além dos felinos, sou muito grata por meu corpo, que esse ano me levou a lugares as vezes necessários, as vezes belíssimos, e me levou até pessoas queridas. Através do corpo nos conectamos, abraçamos, tocamos, sentimos os cheiros, fazemos carinho e cócegas.
Meu corpo me permite correr, fazer exercícios, brincar com meu sobrinho e dançar, uma das coisas que mais amo! Esse ano não me lembro de ter ficado doente, fora um mal-estar ou outro, causados, na maioria das vezes, pela ingestão de lactose ou álcool (foi mal pelos vacilos, corpo!).

Sou grata pela meditação diária que venho praticando. Hábito muito valioso, que esse ano consegui incorporar em minha rotina, e me proporciona calma, concentração e auto-conhecimento.
E como ninguém vive sozinho, a melhor parte de 2019 são os meus companheiros de vida e de luta. Parceiro, familiares e amigos, sem os quais não suportaria todo peso de um ano tão difícil. "Ninguém solta a mão de ninguém!"

Sou grata por ter conseguido me qualificar no metrado esse ano, e pelo tanto de conhecimento que adquiri através do estudo, de leituras, conversas e sessões de orientação, de outras atividades acadêmicas e também de oficinas livres (como a que mencionei lá em cima), e coisas que vamos ouvindo aqui e ali, testando acolá e passando adiante, porque o maior sentido do conhecimento é esse, o de compartilhar.

Falando em compartilhar, que tal você, que leu tudo isso, não fazer o mesmo exercício e escrever nos comentários a sua parte boa de 2019? Estou curiosa para saber o que aconteceu de bom e pelo que você é grata/grato.




quinta-feira, 21 de novembro de 2019

Perdoe a ausência e o mal jeito...

... mas gente...
Correria total hoje.
Cheguei em casa há pouco pra editar meu programa (podcast).
Prometo que vou, logo no início, mandar um salve pra vocês pra compensar não ter um post legal aqui hoje!
Para ouvir, clique aqui, logo após a meia noite, que é quando o programa estará disponível! 
Abração!
Quer dizer... Já tem vários disponíveis, mas a edição dessa sexta sai meia-noite ou pouco depois disso!
Abraaaçoooooo!

quarta-feira, 20 de novembro de 2019

Uma América hemofílica

O livro “As veias abertas da América Latina”, lançado pelo uruguaio Eduardo Galeano, em 1971, deveria ser leitura obrigatória para todo cidadão latino-americano. 

Não é um livro dos mais agradáveis, nem prende o leitor do começo ao fim. Isso porque Galeano não escolhe o caminho sedutor da opinião sem fundamento. O texto agradável do autor é recheado de referências histórias e documentais, que comprovam as informações da obra que, já no sumário, fala da “pobreza do homem como resultado da riqueza da terra”.

Com quase 50 anos, o livro parece ter sido escrito ontem. Lá fica claro como o período conturbado que os países latinos estão passando não é uma exceção a ser superada, mas uma regra, interrompida por curtos períodos de prosperidade, necessários para apaziguar a revolta do povo explorado há meio milênio.

Hoje o petróleo – brasileiro ou venezuelano –, o gás boliviano ou o cobre chileno são o sangue das veias abertas. Em outras épocas foram o ouro, a prata, o açúcar e, como diz Galeano, até a merda das gaivotas que cobria as encostas de pedra da orla peruana, exportada como excelente fertilizante aos agricultores europeus.

O que sobra da pilhagem de países ricos é a metade da população brasileira que sobrevive atualmente com 413 reais por mês, são as mais de 200 pessoas que perderam a visão em protestos no Chile, alvos de policiais provavelmente alinhados com os oficiais bolivianos que recortaram a bandeira indigenista da farda após a derrubada do governo.

Policiais indígenas negando a bandeira indigenista só é compreensível em uma região em que a exploração europeia começou há mais de 500 anos, culminando no oprimido desejando o status de opressor. É o que explica a existência de ao menos 334 células neonazistas – movimento ligado à farsa da pureza da raça branca – no Brasil, país símbolo da miscigenação.

As veias abertas da América Latina é um livro denso, cansativo, triste, às vezes deprimente, mas ainda assim indispensável, por mostrar as raízes da exploração perene em uma região que, com as veias abertas, parece hemofílica. O sangramento não irá estancar com o tempo e o esforço para que a cicatrização aconteça deve ser coletivo.

terça-feira, 12 de novembro de 2019

Jeito

Por que tudo parece normal, mas não está?
Não sei.
Quando eu era pequena meu avô dizia ''o Brasil não tem jeito''. 
Ele falava isso há anos. 
É uma frase que entrou na corrente sanguínea do país, as pessoas pensam que o Brasil não tem jeito. E quando tudo está errado, parece certo. E quando está certo, parece errado.

Um amigo que trabalha em um centro espírita me disse ''o Brasil é um lugar de expurgo''.
O padre da igreja diz ''tem religiões demais aqui, isso bagunçou o país''.
Economistas dizem que tudo é instável por causa ''da moeda''. 
Pessimistas falam que é assim mesmo por culpa da ''corrupção''.

E vamos indo, nesse mar de opiniões contrárias, ninguém se entende, ninguém conversa, mas todos concordam com uma coisa ''o Brasil não tem jeito''.

Essa frase entrou no inconsciente coletivo e contaminou toda a nossa percepção. Vivemos em um país rico em recursos naturais, justo quando o mundo mais sofre a falta deles, temos espaço e clima bom, tudo para crescer, mas cada vez mais diminuímos, guiados pela certeza de que ''o Brasil não tem jeito''.

Tem sim. Tudo tem. E começa com a extinção dessa frase, com a remoção desse pensamento. Tudo tem jeito, ora, não somos o  país do ''jeitinho''?
E justo agora que precisamos dar um jeito, não tem jeito?
Sempre tem. O jeito é acreditar que tem jeito.

Iara De Dupont

segunda-feira, 21 de outubro de 2019

Sobre sumiço e #ModernLove

Que saudade daqui!
Minha gente, peço perdão pelo descaso nos último meses. Toda vez que lembrava de escrever, o dia já havia passado. Neste momento, são 03h48 da manhã dessa segunda-feira. Tô sem sono, curtindo músicas da Brandi Carlile no Prime Music da Amazon.
Cliquei no Blogger para postar sobre a série pela qual me apaixonei nessa madrugada, "Modern Love", também da Amazon (disponível na Amazon Prime Video). 
Daí olhei pra data no meu notebook e vi que é dia 21! O dia a mim dedicado nesse blog no qual fui recebido com tanto carinho, anos atrás!
Não é nada pessoal. No meu blog também tomei chá de sumiço. Desde maio não componho uma linha sequer. O fato, encarando-o de frente, é que na real, cansei de escrever. Até mesmo nas redes sociais eu diminuí minha participação. Tenho usado o Facebook mais para divulgar o movimento no qual faço parte (pra isso, acho super interessante). 
Mas como estou aqui, quero aproveitar o espaço para convidar você a ver essa série, que mencionei linhas acima!

Quem me lê (ou me leu) há anos, sabe que sou uma pessoa apaixonada por cotidianos! E isso não mudou em mim! Continua a mesma coisa! Essa série trata de cotidianos de pessoas, histórias inspiradas em uma seção de um jornal dos Estados Unidos. (nota mental: procurem a música "That year", da Brandi Carlile, para ouvir, é linda e tô ouvindo neste exato momento - EDIT: Achei o clipe dela, e encerrarei o post com ele)

Deixo aqui o trailer do canal da Amazon americana. Infelizmente, não traz legendas em português brasileiro, e esse trailer não está disponível no canal brasileiro do YouTube deles. Mas dê uma olhadinha! Vale a pena!


Só assisti aos 3 primeiros episódios até o momento, mas pretendo ver mais durante o dia de hoje.
São 8 no total. Histórias independentes, mas que, como disse uma vlogger num vídeo review dela (vi só o título e anúncio), deixam o coração "quentinho"! Ahahaha! Curti essa definição!

Peço licença para postar exatamente o mesmo conteúdo de hoje no meu blog particular, no qual quero voltar a escrever, mas a preguiça teima em não deixar, o quê é uma pena, pois sempre adorei estar por lá. Por aqui também, claro!

Minha vida tem passado por verdadeiras transformações.
Há muito de novidade a chegar. Mas isso, pode ser que escreva mais pra frente.
Aqui e /ou no meu Blog do Márcio Luís. 

Minha gente, por hoje é isso!

Pra encerrar, como sempre faço, deixo um clipe pra vocês!
E como havia comentado ali acima, achei o vídeo de "That year", da Brandi Carlile!
A voz dessa menina é incrível! Pelo menos pra mim!
À vocês aqui do blog das 30 pessoas e do meu particular também, o meu abraço!
E até a próxima!

domingo, 20 de outubro de 2019

Virando uma Venezuela

O Brasil não pode virar uma Venezuela. Essa premissa é repetida exaustivamente por setores conservadores da sociedade brasileira e virou a principal, quando não a única, promessa de campanha de alguns candidatos, na eleição de 2018.

Para evitar tamanha calamidade caberia a pergunta: como a Venezuela virou uma Venezuela?

É necessário voltarmos para a década de 1970. Enquanto vivíamos os anos de chumbo da ditadura militar, que torturou e assassinou opositores ao governo sob o argumento de evitar torturas e assassinatos por parte do governo – na época a premissa era que o Brasil não poderia virar uma Cuba –, a Venezuela já havia reestabelecido a democracia e a população venezuelana elegeu Carlos Andrés Pérez.

O governo de Pérez manteve o viés de esquerda que prometeu durante a campanha e governou de 1974 a 1979, nacionalizando indústrias de petróleo, apoiando a soberania de países latino-americanos e se mantendo próximo de outros governos de esquerda. Apesar de popular, o governo foi constantemente acusado de corrupção.

A constituição da época não permitia a reeleição e a popularidade do presidente não foi transferida ao candidato à sucessão de seu partido, a Acción Democrática, que acabou derrotado.  Pérez só pode concorrer novamente, com nova conquista eleitoral, em 1989.

Depois de uma década longe do poder a situação política e econômica havia mudado. Logo nos primeiros dias de governo o presidente quebrou as promessas de campanha, dando uma surpreendente guinada à direita, aprovando um plano de austeridade fiscal e várias medidas neoliberais.

A insatisfação com o governo gerou o movimento conhecido como Caracazo, que teve como estopim o aumento do preço do transporte coletivo. Sob influência do que havia ocorrido com um tal Fernando Collor, a Venezuela forjou um processo de impeachment sem a menor base jurídica, afastando o presidente em 1993.

A presidência foi assumida de forma interina por Octavio Lepage, que ocupou o cargo por apenas 15 dias. O congresso designou Ramón José Velásquez como presidente, que ficou no cargo por pouco mais de 6 meses, até a eleição seguinte.

O presidente eleito foi Rafael Caldera, que com minoria no congresso não conseguiu aprovar planos econômicos e teve que lidar com pautas bombas da oposição, que apostava no 'quanto pior melhor', para tomar o poder nas eleições seguintes.

Disposto a suceder Caldera, havia um militar que um ano antes da eleição tinha 4% de apoio. Com um partido recém-criado e apoio súbito da população, o Tenente-coronel Hugo Chávez chegou ao poder em 1999, encerrando quatro décadas de alternância de apenas três partidos políticos no comando do país.

A eleição do militar foi legítima, reconhecida por órgãos internacionais e com o apoio de líderes de países vizinhos. No Brasil Chávez recebeu o apoio explícito do então deputado Jair Bolsonaro.

Uma diferença sensível entre o primeiro ano de governo de ambos é que enquanto o Capitão Bolsonaro vê sua popularidade derreter até mesmo dentro do próprio partido rachado, o Tenente-coronel venezuelano usou a popularidade inicial para manter a base eleitoral, governando para a população.

sábado, 12 de outubro de 2019

Hoje

Hoje é dia doze de outubro, o dia das crianças, aquele pequeno ser que já fomos um dia.
Mas passa tão rápido! 
É, quando estamos distantes, porque enquanto somos crianças tudo parece lento e intenso demais. 

Em algum momento é como atravessar uma ponte, deixamos a criança em um lado e corremos para o outro. Não é uma despedida longa nem demorara, é tão rápida que anos depois nos perguntamos em que momento ela aconteceu.

Pessoas se tornam adultos e começam a gastar fortunas em consultórios, para encontrar sua ''criança interior''.
Livros sobre o assunto inundam todos os lugares, onde está a nossa criança interior?
Debaixo de muitos escombros, de todas as ruínas que passamos pelo tempo. Ela segue ali, escondida, aguardando o momento de vir à tona.

A criança que carregamos dentro sempre é a nossa melhor parte, talvez vez por isso a escondemos, porque sabemos que este mundo não merece nem sabe tratar bem uma criança.
Não é um lugar para mostrar o melhor de nós. Que pena.
Assim milhões de crianças continuam acompanhando a vida pelas frestas da janela de alguma alma adulta.

Iara De Dupont

quarta-feira, 9 de outubro de 2019

Sobre amoras e outras coisas


Nunca fui muito de frutas, mas amo a amoreira daqui de casa.
Ela já estava aqui há 3 anos atrás, quando chegamos, porém pequena, simplesmente um cotoco de árvore magricela, um mero arbusto que foi crescendo em despeito ao nosso não cuidado e à nossa não rega diária. 
Mas cresceu, e esse é o primeiro ano que dá frutas. 
Está carregada já, e todo dia tem mais amoras prontas para serem colhidas, muitas outras ainda verdes, esperando o amadurecimento, e mais um tanto que não pôde me esperar, e se espatifou no chão.
(...)
Que saudades sentirei dessa casa, dessa amoreira, dessa vida que tenho hoje... Se é possível já sentir saudades do que ainda se tem, eu sinto. Mas não deve ser saudades, deve ter outro nome.

Bem vindas, amoras, bem vinda, primavera!

domingo, 22 de setembro de 2019

O amor é um ato revolucionário

"Eles precisam aprender que a mulher não voltará para a cozinha, o negro não voltará para a senzala e o homossexual não voltará para o armário", brada um Chico César, que desde o álbum "Estado de Poesia" vive o melhor momento de sua carreira, após cantar "Pedrada", uma das músicas mais políticas de novo álbum "O amor é um ato revolucionário", para um Sesc Pinheiros lotado e eufórico!

Nos tempos sombrios em que vivemos, ainda temos a arte para nos dar alento. 

Assim, apenas ouçam essa pequena jóia do cancioneiro deste paraibano genial que é Chico César! E fogo nos fascistas!




sexta-feira, 20 de setembro de 2019

Setembro amarelo


Naquele dia de tarde escaldante de setembro, Narciso faltou no trabalho. Sua primeira falta em muitos anos trabalhando no mesmo local. A dedicação de marcar os compromissos fora do horário de trabalho, no máximo durante o horário de almoço, era mais por medo que por dedicação. O pânico de perder o emprego fazia dele um funcionário exemplar.

Narciso simplesmente não saiu da cama. Não ligou nem deu nenhum tipo de satisfação. Só não foi trabalhar. Desligou o celular por receio de que ninguém sequer ligasse para saber o que havia acontecido e se concentrou, involuntariamente, na dor de cabeça. Sentia como se uma agulha bem fina atravessasse seu olho e fosse futricar o cérebro.

E passou a manhã assim, divagando em pensamentos alternados com cochilos, que por sua vez eram interrompidos pela dor de cabeça. Despertava e dava de cara com a pálida luz amarelada da lâmpada incandescente. A imagem perfeita do setembro amarelo.

Já era de tarde. Com calor, molhado de suor e com a cabeça ainda doendo Narciso encheu o copo e ficou pensando na hipocrisia do tal setembro amarelo. Procure ajuda. Procure ajuda. Procure ajuda. Procure ajuda. Procure ajuda.

O primeiro gole foi pensando na consulta particular da terapia, que o plano de saúde não cobre integralmente. Poderia pagar do próprio bolso se desse calote no aluguel. Quem sabe se parasse de comprar comida.

O segundo gole foi pensando no posto de saúde, onde a consulta com a psicóloga tinha fila de espera de cinco meses, para falar por vinte minutos com a doutora que atendia em série os pacientes desconhecidos.

Na metade do terceiro gole lembrou do CVV e quase engasgou com a gargalhada. Já sabia de cor o roteiro que os atendentes seguiam com a melhor das intenções. 

Deu o quarto e último gole, dedicado a todos os que não podiam ajudar porque estavam ocupados demais, replicando posts sobre a importância de procurar ajuda.

Narciso nem lavou o copo. Deixou sobre a pia e voltou a deitar. Era só esperar fazer efeito. Havia seguido todas as recomendações à risca. Procurou ajuda. Procurou, procurou e procurou. Essa era a recomendação.

quinta-feira, 22 de agosto de 2019

Sobre patotas

Desde muito antes de existirem grupos de Whatsapp e antes mesmo de qualquer comunidade do Orkut, eu já gostava de me associar em grupos, formar as minhas turmas. Acho que muito disso tem a ver com o legado televisivo e com o idílio das casas na árvore dos filmes da sessão da tarde. 

O primeiro destes grupos foi o Rockfoi, quando eu estava na segunda série. Éramos apenas eu e Rodrigo, meu melhor amigo na época. Presidente ele (auto-intitulado) e "chefe" eu (porque era o que me parecia ser o mais importante depois de um presidente). Não sabíamos muito bem qual era a função da nossa "turma" mas sempre gostávamos de tentar inventar uma e nisso investíamos 98% do nosso "expediente". Com o tempo resolvemos que tínhamos vocação para editores e publicamos um livro de poesias intitulado "Poesias inventadas por Rodrigo Alves de Sousa e Felipe de Souza Monteiro", que no caso éramos nós mesmo. O livro era de poesias, mas também de entrevistas, de charadas e o que mais desse na telha, algo que poderíamos muito bem ter chamado de Fanzine, se soubéssemos o que era um Fanzine na ocasião. 

No ano seguinte, o Rodrigo mudou de horário e a amizade deu uma minguada e as atividades do Rockfoi também, até sumirem de vez. Mas demorou muito para eu criar uma nova "turma". Foi na quarta série e se chamava Spiter & Piter, algo como uma sociedade de dois irmãos gringos, mas era só eu e o Zé Luiz mesmo. Pobre Zé Luiz. Ele claramente não queria estar metido naquilo, mas eu não lhe dava escolhas. Motivado pela vocação editorial de minha investida coletiva anterior, decidi que mais uma vez escreveria livros, só que dessa vez seria algo mais sério, com muitos títulos (todos de terror) e teria até um selo com nossa marca colado na quarta capa (eu desenhava numa folha de caderno um círculo escrito "Spiter & Piter" em volta, recortava e colava nos livros. A maioria dos livros era escrita, ilustrada, diagramada e lida só por mim mesmo (algo como este blog é hoje), mas de vez em quando eu assinava como Zé Luiz para eu não pensar que fazia tudo sozinho. O Zé nunca se importou (pensando bem, eu nem sei de verdade se ele sabia que fazia parte da turma). 

Na quinta série eu mudei de ramo. Agora eu era compositor de paródias de um grupo chamado "Los espanholes", assim com H no meio mesmo, e não me pergunte o porquê do espanholismo. Agora éramos um grupo de verdade, umas 4 pessoas contando comigo e com minha irmã. Na verdade, eu continuava como único autor, já que era eu quem compunha todas as letras, mas ao menos os outros me ajudavam nas melodias e na cantoria. Acho que aquela coisa de ter muitos professores num ano só me desnorteou tanto que eu precisava me expressar de alguma maneira, nem que fosse para achincalhar os professores, nem que fosse somente para mim mesmo, para minha irmã, para o Tonhão e para a Bruna (ok, preciso ser franco, estes dois últimos eram só participações especiais) (bem raras) (ok, eu nem se eles existiam).

Depois disso foi um grande hiato sem turmas, ao menos sem nenhuma "institucionalizada", acho que eu fui ficando mais habilidoso na arte de fazer amigos e as turmas foram se diluindo umas nas outras e eu não via mais necessidade de dar nomes a cada nova ramificação que surgia. Mas não por muito tempo. Já passados dos vinte vieram a Pipoca Verborrágica, os Tertuliadores e mesmo, por que não, este resistente Blog das 30 Pessoas. 

Não sei porque me lembrei disso. Talvez seja só saudosismo, talvez seja uma crise da meia idade (absurdamente precoce, é preciso que se diga) ou talvez tenha sido porque me dei conta, que nos tristes dias em que vivemos, não há forma segura de sobreviver se não nos unirmos em boas patotas...

terça-feira, 20 de agosto de 2019

Feijão em pote de sorvete

De todos os perigos que nos cercam em pleno século 21, o que mais me aflige é a possibilidade de pegar o pote de um delicioso sorvete e dar de cara com aquele feijão congelado há meses.

Não menosprezo o feijão. Talvez a culpa seja do pote. Falta transparência, mas sobretudo tecnologia para solucionar um problema tão antigo. Pior, ao invés de resolvermos a confusão, estendemos essa possibilidade para as pessoas.

Percebi isso observando o tio Alcínio, que como bom piadista adorava dizer às crianças que havia sorvete no congelador, mesmo sabendo que era feijão, somente para ver a frustração dos pequenos.

Tio Alcínio afirmava ser um democrata. Rechaçava os males do nazismo e não abria mão de escolher um governante – por isso mesmo se recusava a aceitar qualquer resultado eleitoral que não estivesse de acordo com sua escolha.

Quase sempre bem-humorado, aquele senhor que seria incapaz de fazer mal a uma mosca defendia a liberdade de andar despreocupado pela cidade. Por isso mesmo, dizia, era a favor de uma polícia que atirasse para matar quem quer que ameaçasse essa paz tibetana.

Em meio a gargalhadas, tio Alcínio se orgulhava em tolerar as diferenças. Cada um que fosse como quisesse, desde que bem longe daqui, afirmava cada vez mais vermelho, de preferência do outro lado do Atlântico, ofegava já sem fôlego pela crise de riso.

Para suas piadas sempre buscava a concordância da secretária do lar. A senhora, cujo vocabulário se restringia ao ‘sim, senhor’, trabalhava lá desde os 14 anos. Era praticamente da família, faltando para isso somente o direito à herança.

Tio Alcínio. Um democrata cristão. Como toda metáfora, compará-lo com o feijão no pote de sorvete é limitado. A pobre leguminosa pode decepcionar, mas tem seu valor. Qualquer nutricionista afirmaria ser melhor para a saúde o que um sorvete rico em açúcares e gorduras. Mas a decepção...