Mostrando postagens com marcador carta. Mostrar todas as postagens
Mostrando postagens com marcador carta. Mostrar todas as postagens

sexta-feira, 27 de maio de 2016

A linguagem universal

Para a minha menina.

Na noite de 27 de setembro de 2015, as redes sociais voltaram sua atenção para o eclipse lunar, a chamada “lua de sangue”. Mas como acontecia com qualquer outro evento, o destaque durou pouco, restringindo-se a belas imagens e comentários superficiais sobre o assunto. A vida prosseguiu.
Estava eu com 20 anos. Tinha acabado de ingressar no curso de psicologia. Apesar da enorme alegria em ser aprovada no processo seletivo, esse sentimento durou pouco tempo. Já no primeiro semestre, tinha constantes crises de ansiedade. Minha avó (você teria gostado dela) dizia que o problema era minha arrogância e ambição, nunca estava contente com o que tinha. Eu achava que ela estava certa, mas não conseguia evitar.

No segundo semestre, minha saúde mental se agravou. Apesar de resistir a ideia, para conseguir conviver socialmente precisei fazer uso de medicamentos. Até então, acreditava que apenas eu era problemática, mas quanto mais interagia nos espaços que frequentava, mais descobria que a instabilidade psicológica estava disseminada: de marginais a religiosos praticantes, ninguém escapava.  Às vezes, saia uma matéria ou artigo nos jornais a respeito do aumento do uso de drogas psicotrópicas, porém o assunto permanecia tabu. Sentia que alguma coisa estava acontecendo. Uma crise existencial se espalhava por toda a sociedade, centros urbanos e rurais, interior e capital. A multidão estava à beira do colapso e caminhava em direção a ele, anestesiada.

Então a lua sangrou. Quem poderia imaginar que aquele era o sinal dos novos tempos? As coisas mais importantes acontecem debaixo do nosso nariz, sem nos darmos conta. Há muito tempo a humanidade tem conhecimento sobre outras formas de consciência e diferentes meios de transcendê-la. Naquela época, cientistas já sabiam da existência da molécula DMT, um composto simples, facilmente encontrado na natureza, e que tem profundos efeitos na consciência humana. No mundo ocidental capitalista, todavia, o único estado mental que interessa é o de alerta para produzir e consumir mais e mais, daí a falta de interesse em estudar o assunto.

Ocorre que o DMT (ou dimetiltriptamina) é um transmissor que permite a comunicação entre nós, seres da natureza. Enquanto ficávamos distraídos lutando contra os regimes fascistas que ascenderam naquele ano de 2015, o plano de eliminar uma parcela da humanidade estava em curso. Primeiro foi o clima: a água se mostrou um bem finito, secaram as principais represas do Estado de São Paulo e de Minas Gerais, foi por esse motivo que tivemos que rumar para o norte. Também foi nessa época que conheci o teu pai. Muitos amigos morreram nos anos seguintes, porque quem não teve condições de fugir do sudeste foi obrigado a viver em condições precárias.

O surgimento da “lua de sangue” foi o sinal para o golpe da natureza contra nós, humanos, a última tentativa dela nos deter: a insanidade mental generalizada, a qual não podia mais ser controlada por medicamentos sintéticos. A nossa sorte, minha e do teu pai, foi conhecer o Zé Pedro, pois foi ele que nos protegeu. Como você deve saber, o Zé é do povo Poyanawás e nos convidou logo que chegamos ao setor para participar de rituais xamânicos. Naquela época, a ayahuasca (ou yagé) nos salvou!

Faz um mês que descobriram que foram as plantas, qualquer planta, as responsáveis por nos enlouquecer.  E hoje soube da notícia de que a ordem dos líderes mundiais é eliminar toda vida que não seja humana. Temo pelo que virá. Temo por você. Resolvi escrever essa mensagem porque não sei por quanto mais tempo viverei e não quero que você seja privada da história, do começo de tudo isso. Desejo que essa notícia seja falsa, mas creio que não seja. Saiba que o meu amor vive em você.

Anna Ma.

domingo, 22 de maio de 2016

Post Scriptum

Querido Papai, querida Mamãe,

Sentem-se e leiam.
(um chá de camomila nunca é demais... uma pena a Rosa não vir hoje)
Finalmente temos alguns minutos pra conversar:

Devolvo a vocês o meu corpo.
Que nunca chegou a ser mesmo meu.
O retalho por fora
Assim como vocês o retalharam por dentro.

Desculpe-me fazê-lo na sala de jantar
As manchas de sangue custam a sair.
Mas não deixem de fotografar e contar pra toda família
Finalmente o bibelô de vocês
Fez algo realmente notável!

Nunca tive medo de morrer.
Tenho medo é de seguir vivendo.
Medo de um dia me olhar no espelho e enxergar vocês.
Medo de viver num mundo de aparências
Conveniências,
Novela das seis

Não viverei pra ser genial, engenhoso, engenheiro.
Não viverei...
Se não posso construir minha vida
Construo sim minha morte!
Se queriam me ver doutor
Ajo agora como doutor de mim mesmo

Vou-me cedo.
Quase sem ter chegado.
Viro a chave duas vezes
E parto sem olhar pra trás.

Viver dói.
Viver cansa.
Viver dá câncer.
Me autoproclamo inadaptado à vida!

Guardem esta carta. 
E leiam-na. 
Leiam-na até decorá-la. 
E vejam na podridão que há em cada linha
O reflexo da podridão que há em vocês.

Com amor,

Eu

segunda-feira, 28 de setembro de 2015

líquido


líquido
adjetivo
1. fís. diz-se do estado da matéria intermediário entre os estados sólido e gasoso, caracterizado por apresentar forças de coesão intramoleculares mais fracas que as dos sólidos, e mais fortes que as dos gases.
2. que flui ou corre como água.

Era o segundo cigarro que acendia em menos de quinze minutos. Assoprou a fumaça enquanto olhava de soslaio para a carta fechada em cima da mesa. Tamborilava os dedos no tampo de madeira enquanto dava mais um trago.

Anne, 28 anos, solteira, virginiana, ascendente em aquário. E quem raios escreve e envia uma carta hoje em dia?!

Apagou o cigarro no cinzeiro e ficou encarando o envelope. Ela sabia quem era, conhecia aquela letra cursiva do diabo mais do que gostaria de admitir. E adorava e odiava aquela caligrafia.

Amor fati. Amor líquido. Tantas definições apenas para esconder o quanto foi otária.

 “Líquidos mudam de forma muito rapidamente, sob a menor pressão. Na verdade, são incapazes de manter a mesma forma por muito tempo. No atual estágio “líquido” da modernidade, os líquidos são deliberadamente impedidos de se solidificarem. A temperatura elevada — ou seja, o impulso de transgredir, de substituir, de acelerar a circulação de mercadorias rentáveis — não dá ao fluxo uma oportunidade de abrandar, nem o tempo necessário para condensar e solidificar-se em formas estáveis, com uma maior expectativa de vida.” (BAUMAN, Zygmunt)

Levantou da cadeira e começou a andar pelo apartamento.

“...  Tudo para disfarçar o antigo medo da solidão.”

Olhou para o chão enquanto andava, os braços cruzados e inquietos.

Eventualmente, tudo o que queria era não se sentir descartável. Aquela carta, e não precisava nem abrir para saber aquilo, carregava uma série de feridas antigas, promessas que deixaram de se cumprir e outras coisas largadas pelo caminho.

Não foi ela quem simplesmente desistiu de tudo. A ela só coube encarar com dignidade e seguir em frente. É isto o que fazemos quando acreditamos demais, fingir que superamos e aguardamos silenciosamente pela próxima decepção, virando a esquina. Acender um cigarro, olhar para os dois lados e atravessar a rua, uma parte sua torcendo para chegar do outro lado enquanto todo o resto deseja ansiosamente pelo motorista ensandecido que vai te fazer voar pela pista. Talvez quando você estiver no seu leito de morte no hospital, quem você espera surja, falando o quanto você fez falta.

Mas foda-se. Não vai acontecer e ninguém perguntou nada.

E a carta ainda estava ali. Chegou junto com as contas, como se fosse algo banal.

Talvez banal fosse mesmo a palavra.

 “As relações se misturam e se condensam com laços momentâneos, frágeis e volúveis. Num mundo cada vez mais dinâmico, fluído e veloz. Seja real ou virtual.
(...)
 Vivemos tempos líquidos, nada é feito para durar, tampouco sólido. Os relacionamentos escorrem das nossas mãos por entre os dedos feito água”.

Olhou mais uma vez para o envelope em cima da mesa. Inquisidor. Pegou o isqueiro.

“...as pessoas precisam sentir que são amadas, ouvidas e amparadas. Ou precisam saber que fazem falta. (...) Ser digno de amor é algo que só o outro pode nos classificar. O que fazemos é aceitar essa classificação. Mas, com tantas incertezas, relações sem forma - líquidas - nas quais o amor nos é negado, como teremos amor próprio? Os amores e as relações humanas de hoje são todos instáveis, e assim não temos certeza do que esperar”.

Apreciou a carta enquanto pegava fogo. Não precisou nem abrir para saber o que era. Se seu remetente tinha sido covarde por tantos anos (e não era menos covarde agora), não cabia à Anne ser corajosa ou forte mais uma vez. Pra que se dar a chance de se machucar novamente, por alguém que foi sem olhar para trás?

Não importa. Meios que justificam fins inacabados só são detalhes.

E aquilo, num mar de promessas inacabadas, estava finalizado.

“E foda-se você” – disse, ao acender o cigarro no envelope.