sexta-feira, 4 de dezembro de 2020
Trilhos
quarta-feira, 2 de dezembro de 2020
LA MANCHA de sangue
Pablo Picasso (1)
Por Elisabeth Guimarães
O termo "quixotesco" em
alguns dicionários refere-se a quem é generosamente impulsivo; sonhador,
romântico, nobre, mas um tanto desligado da realidade. Desligado da realidade?
Nada mais equivocado. Nossos inimigos não são imaginários. As tragédias que
acometeram os EUA por ocasião do assassinato de George Floyd, e o Brasil com o
assassinato de Marielle Franco, de João Adalberto e de tantos pretos e tantas pretas
não só provoca lágrimas de indignação, saudade e dor, como nos desafia à ação.
Os questionamentos mais instigantes são os que revelam indignação acompanhada
de esperança. Alguns preferem o silêncio contrariado por outros que bradam. Os últimos
acontecimentos despertaram mentes e corações; razão e emoção; alternadamente
requisitados em busca de esperança e força.
De acordo com Gustavo Bernardo, doutor em Literatura Comparada, o oitavo capítulo de Dom Quixote de La Mancha (2) intitulado “Do bom sucesso que teve o valoroso D. Quixote, na espantosa e jamais imaginada aventura dos moinhos de vento, com outros sucessos dignos de feliz recordação” relata o emblemático episódio em que Dom Quixote teria tido sua mais contundente derrota. No entanto, o título do capítulo aponta para uma das principais vitórias do cavaleiro. E não é para menos. No episódio Dom Quixote luta contra moinhos de vento. Gigantes cruéis que, posteriormente, se revelam novamente como moinhos de vento.
Não estamos lutando contra moinhos de vento! Os gigantes cruéis estão aqui! De carne e osso respiram bem perto de nós; podemos sentir o hálito de suas vozes ameaçadoras; podemos ver suas mãos manchadas de sangue. O aparente absurdo não reside na ideia de o homem de La Mancha enxergar gigantes no lugar de moinhos de vento, mas em lutar sozinho contra todos eles, bradando: "Não fujam, criaturas vis e covardes, que um cavaleiro sozinho é quem os ataca". Assim, "lutar contra moinhos de vento" tornou-se, desde então, em todas as línguas ocidentais, o paradigma da luta por propósitos e causas. Não importa ao protagonista, entretanto, que a luta se apresente inútil, se a entende como necessária para o mundo. Justamente por parecer inútil ou perdida é que vale a pena. Como lutar? Com a força da palavra que move o mundo. Não importa se é uma simples palavra ou se é um tecido de palavras entrelaçadas por indignação, dor e saudade. Não estamos sozinhos! Não estamos sozinhas!
“— Valha-me Deus! — exclamou Sancho — Não lhe
disse eu a Vossa Mercê que reparasse no que fazia; que não eram senão moinhos
de vento, e que só o podia desconhecer quem dentro na cabeça tivesse outros?”(2) Dom Quixote reage dizendo que as coisas da guerra, mais que as outras, estão
sujeitas à mudança contínua. Na verdade, ele explica para o seu escudeiro, que
o sábio Frestão transformou os gigantes em moinhos de vento para lhe roubar a
glória da vitória. O ideal, a fé e a esperança inabaláveis de Dom Quixote nos
seduz, nos convida ao despojamento da zona de conforto, da quebra do silêncio,
da busca pela justiça. Ao fazê-lo, afirma o valor da liberdade, da igualdade e
da fraternidade, enfim, do amor. Somos todos heróis, somos todas heroínas desta
jornada. Nada nem ninguém podem calar nossas vozes e, se por um infortúnio o
fizerem, ainda assim, continuaremos a pensar:
A primeira coisa que a gente percebe, nesse papo de racismo é que todo mundo acha que é natural. Que negro tem mais é que viver na miséria. Por que? Ora, porque ele tem umas qualidades que não estão com nada: irresponsabilidade, incapacidade intelectual, criancice, etc. e tal. Daí é natural que seja perseguido pela polícia, pois não gosta de trabalho, sabe? Se não trabalha, é malandro e se é malandro é ladrão. Logo, tem que ser preso, naturalmente. Menor negro só pode ser pivete ou trombadinha (Gonzales, 1979b), pois filho de peixe, peixinho é. Mulher negra, naturalmente, é cozinheira, faxineira, servente, trocadora de ônibus ou prostituta. Basta a gente ler jornal, ouvir rádio e ver televisão. Eles não querem nada. Portanto têm mais é que ser favelados. GONZALES, 1984 - grifo nosso (3)
Exatamente na véspera do Dia da Consciência Negra acontece a morte por espancamento de João Alberto Silveira Freitas por um segurança e um policial militar fora de serviço, no Carrefour, em Porto Alegre. "Basta a gente ler jornal, ouvir rádio e ver televisão." Gonzales, 1984 (3). Entrevistado pela mídia, o vice-presidente Hamilton Mourão (PRTB) disse que não existe racismo no Brasil: “Digo com toda a tranquilidade: não existe racismo no Brasil. É uma coisa que querem importar [dos EUA], mas aqui não existe.”
Racismo? No Brasil? Quem foi que disse? Isso é coisa de americano. Aqui não tem diferença porque todo mundo é brasileiro acima de tudo, graças a Deus. Preto aqui é bem tratado, tem o mesmo direito que a gente tem. Tanto é que, quando se esforça, ele sobe na vida como qualquer um. Conheço um que é médico; educadíssimo, culto, elegante e com umas feições tão finas... Nem parece preto. GONZALES, 1984 - grifo nosso (3)
Diante dos acontecimentos reajo de todo meu coração, corpo e alma, energia e potência. O texto de Lélia Gonzales (3) intelectual, política, professora e antropóloga brasileira ao lado da fala de Mourão já diz tudo. Quero deixar aqui meu pesar pela vida de João Alberto, pela família de João Alberto, pelos amigos e amigas de João Alberto. Meu pesar por todos João Albertos, por todas as Marielles, por todos e todas vítimas da violência da polícia militar brasileira a serviço e fora de serviço.
A palavra dirigida a esses
inimigos aparentemente gigantescos, sim, pode ser apresentada a eles, imaginariamente,
como um moinho movido à esperança. Mesmo que nos rotulem de tolos e tolas,
ingênuos e ingênuas, quixotescos e
quixotescas, não importa. Ainda temos a palavra sempre adornada pela
responsabilidade de se revelar firme e doce ao mesmo tempo. Educada,
consciente, inflamada, bradada se for preciso, mas nunca ofensiva nem
preconceituosa. Este é um registro de esperança na voz brasileira que não
precisa de herói; é heroína. Clarice Lispector fala por todos e todas nós: “A
palavra é meu domínio sobre o mundo.” A premiada escritora e jornalista,
nascida na Ucrânia e naturalizada brasileira declarava, quanto à sua
brasilidade, ser pernambucana. Avante, pretos e pretas! Avante brancos e brancas! Que
nosso brado ressoe por todos os cantos do planeta!
1. Em 1955, o criador do cubismo dedicou um desenho a tinta do cavaleiro e seu fiel escudeiro. A história que se conhece desta ilustração revela que Pierre Daix, amigo íntimo de Picasso, lhe pediu um desenho para a revista Les Lettres Francaises pelo 350º aniversário da publicação de Dom Quixote. Pedido atendido por Picasso na mesma hora. A revista foi publicada em 10 de agosto de 1955.
2. Cervantes, Miguel de - Dom Quixote de La Mancha (1605) - Tradução Francisco Lopes de Azevedo Velho de Fonseca Barbosa Pinheiro Pereira e Sá Coelho.
3. GONZALES, Lélia. “Racismo e Sexismo na Cultura Brasileira”. Artigo apresentado na Reunião do Grupo de Trabalho “Temas e Problemas da População Negra no Brasil”, no IV Encontro Anual da Associação Brasileira de Pós-graduação e Pesquisa nas Ciências Sociais, Rio de Janeiro, 31 de outubro de 1980, In: Revista Ciências Sociais Hoje, Anpocs, 1984, p. 223-244.
quarta-feira, 25 de novembro de 2020
Aniversário
Estreei neste blog em há cinco meses atrás. Não fiz cinco textos, uma vez que a mesma pandemia que me empurrou para este espaço também me tomou o tempo necessário para a manutenção de uma regularidade. Contudo, é hora de uma de pequena volta no tempo. Hoje, se faz necessário destacar o porquê da escolha pelo dia 25 de cada um dos dias disponíveis em um mês para me escrever um texto neste blog. .
Trata-se de um motivo muito simples, é o dia do aniversário de um indivíduo muito especial. Cujas mensagem e reflexões ainda são incompreendidas pelas pessoas em pleno século XXI. Uma figura que pode ser muito polêmica. Que gosta de um vinho e de peixe. Não sei se o maior psicólogo que já existiu, mas é alguém que, sem dúvida, sabe ouvir. Condena os vendilhões do templo e os falsos profetas. Um exemplo de conduta e rebeldia. Este é… ou melhor, este sou eu. E dia 25 de novembro é o meu aniversário. E, em 2020, estou completando 37 anos de vida.
Não sou fã de comemorar aniversários, me incomoda ser o centro das atenções. Não que não goste, afinal, sou professor, logo, estar nesta posição, em alguma medida, faz parte da minha rotina. Mas, em sala de aula há uma certa responsabilidade de minha parte em estar neste lugar, já que permiti que minha trajetória seguisse o rumo do magistério. E ali, sem dúvida fico muito à vontade, inclusive, nas salas de aulas remotas. Quer, dizer, lá no fundo, eu sabia que, em alguma medida, ser professor me traria uma série de (micro) alegrias) e daria uma espécie (micro?)poder que me seduziu - vejam que me deixo levar por pouco, ainda mais se levarmos em consideração o poder de figuras como o Thanos correm atrás - e ser o centro da atenções seria um mal necessário com o qual arcar por toda minha carreira.
Mas, não escolhi o dia que nasci. Ou melhor, não tenho responsabilidade alguma pela centralidade conferida à pessoa ao final de um ciclo de 365 dias (às vezes 366) como um tradição de longa data. E a centralidade ali se impõe. Não está nem aí para minha vontade. É mesmo violenta, ainda que o afeto recebido e as lembranças - muitas vezes recheadas de uma surpresa por virem de onde, às vezes, não esperamos - sejam bastante gratificantes.
Bom tudo isso pode soar contraditório, tendo em vista que escolhi justamente o dia 25 que - uma vez por ano será o dia do meu aniversário - para ser o centro das atenções neste blog. Reconheço minha responsabilidade nisso. Não obstante, talvez não passe de um ato falho. Aí, já é caso para minha terapeuta analisar. Talvez leve isso para ela, na próxima seção. E, no ano que vem, quando passarei por esse momento novamente, eu conte para vocês, o que ela achou da escolha do dia 25, como meu dia, no blog das 30 pessoas.
domingo, 22 de novembro de 2020
Livros à prova: O Ateneu, de Raul Pompeia (Unicamp 2021)
sexta-feira, 20 de novembro de 2020
Político é tudo igual? Vote no diferente.
Em um país onde 50% da população vive com menos de 500 reais por mês e 26% dos deputados são empresários, formando a maior bancada da câmara, quem é beneficiado pela afirmação de que político é tudo igual?
Na democracia representativa a ideia é que eleitores escolham políticos que o representem, para que interesses em comum sejam defendidos politicamente. Parte disso acontece na prática.
Não é por acaso que empresários tenham tanto poder e a taxação de grandes fortunas sequer seja colocada em pauta. Também não é coincidência uma bancada ruralista forte e todos benefícios ao setor rural, que aproveita até a pandemia para “passar a boiada” real e metafórica, do ministro Ricardo Salles. E o que dizer de uma massiva bancada evangélica no país que não cobra impostos de igrejas?
A discrepância de forças não se restringe ao plano econômico. Mais de 75% da câmara é formada por deputados brancos, em um país que, segundo o IBGE, 56% da população é negra ou parda. O racismo é histórico e não se restringe ao Brasil, mas a discrepância política é uma barreira densa para o combate do crime – crime de racismo.
Com 51 deputadas, parcos 10% do congresso, as mulheres devem enfrentar grandes lutas para garantir direitos básicos, chamados de privilégios por quem nunca teve seus direitos básicos ameaçados. A batalha não é fácil em um país que ainda exalta a ideia de uma mulher “bela, recatada e do lar”. Podemos lembrar que Dilma Rousseff não podia comemorar um gol sem que a foto fosse estampada em uma revista, para taxa-la de nervosa.
O mesmo raciocínio se estende aos indígenas, sem representação no atual congresso, e homossexuais, com porcentagem residual entre os políticos. São setores atacados cotidianamente, sem a representação adequada, que garanta o amparo político no congresso.
Neste ano as eleições foram municipais, mas as porcentagens não chegam a ter grandes alterações. Algumas mudanças surgem aos poucos, bem mais devagar do que o ideal, principalmente com o aumento das candidaturas dos setores tradicionalmente excluídos da política.
Com mais gente concorrendo o desafio é conquistar a confiança e atrair os votos da sociedade. Se por um lado as eleições municipais não foram tão ruins, expondo o enfraquecimento da onda extremista de 2018, o fortalecimento de partidos conservadores, alinhados com o empresariado masculino, branco e avesso a mudanças que poderiam tornar o país menos desigual, mostra que o caminho a ser percorrido ainda é longo.
Acreditar que político é tudo igual acaba sendo benéfico para quem é contra a diversidade, já que é beneficiado pela homogeneidade de um congresso feito por homens brancos ricos, para homens brancos ricos. Para que políticos não sejam iguais é necessário votar no diferente.
quarta-feira, 18 de novembro de 2020
tricotar flores
terça-feira, 17 de novembro de 2020
sonho

segunda-feira, 16 de novembro de 2020
As Curvas
Claro que sou habitado por memórias, imagens nômades que se confundem nas datas, lembranças que me chamam até a janela para ver o desfile do passado. O que não significa que seja saudosista. Não tenho maior apreço por idades passadas que pela atual. Cada qual com sua índole. Imagino as recordações todas colocadas em um mapa topográfico, carregado de curvas, tantas e tais que é impossível se perceber detalhes. Então, para que não se percam todas no emaranhado do tempo, estacas são colocadas para destacar algumas delas. A escolha é aleatória, nem sequer imagino quem ou o quê lança essas marcas. Quando percebo, já estão ali, pedindo atenção. Esta aqui, por exemplo, mostra um menino de 12 anos com seus brinquedos, cavando túneis em montes de areia. Não era difícil encontrá-los, estavam por toda parte no bairro novo. E enquanto eu organizava uma cidade subterrânea com os bonecos (índios, soldados, robôs), meus colegas de idade descobriam outros jogos: muitos já conheciam os sabores e amores de beijos e toques. Eu imaginava ser bom, mas não tinha pressa, estava ocupado demais recriando o mundo. Os corpos iam crescendo e as roupas diminuindo, as festas se tornavam uma opção aos domingos de árvores e tédio. Os meninos davam a entender que eu estava atrasado, que minha infância se prorrogava além do devido. Eu duvidava: ainda tinha muita imaginação. Também ansiava sentir também o calor alheio, mas projetava isso para um futuro abstrato. Almejava um romance de novela, com direito a trilha sonora, alguma das canções que ouvia ilustrando o enredo. A ficção era minha realidade.
Vai daí que eu me apaixonava
intermitentemente. Bastava que ela soubesse meu nome, ou que aquela fosse
gentil comigo, ou que outra me olhasse por mais tempo e seu nome se tornava
minha fixação, a palavra que eu mais repetiria durante o longo trajeto entre um
e outro acontecimento, paixões que duravam intensos oito ou nove dias. Enfiado
na distração de uma dessas, dividia uma manhã entre observá-la e copiar o que
estava na lousa. Alguém bateu à porta e chamou a professora. Logo ela voltava,
apresentando:
- Essa é nossa nova colega,
Viviane...
Olhei uma primeira vez, passarinho à
toa, à toa. Atentei uma vez mais, para cair na armadilha: Viviane, sardas no
rosto, menina da fazenda, verde-terra na vista. Ali, algo aconteceu. Meu
primeiro alumbramento. A responsável por iniciar os últimos instantes de minha
criancice. Por diante, tudo seria diferente. Isso porque Viviane era diferente,
nenhuma outra era, então, como ela. Viviane tinha seios. Não que nas demais
eles já não iniciavam uma tímida apresentação. Mas nela as curvas se
destacavam, pediam calma e euforia, desassossegavam os afazeres. Puxei uma
salva de palma, assobios e gritos de glória. A escola decretou feriado e uma
parada cívica teve início na quadra. Ninguém notou a festa que se fazia em mim
durante a caminhada dela até sua cadeira.
Filho dos zeladores da escola,
encontrei minha casa à desertos de distância. Palavra alguma significava
aqueles seios. Eu precisava falar com eles. Com ela. Com certeza eu não era o
primeiro navegante à avistar aquelas ilhas, era preciso um plano. Tentei montar
uma prévia com meus brinquedos, e subitamente eles se transformaram em objetos
inúteis. Viviane não quereria nada comigo se me visse com eles: estava decretada
a falência múltipla da meninice. Pela última vez enterrei os bonecos, desta vez
no quintal, sob o pé de maracujá em flor.
Namoramos, conhecemos outras nações, mergulhei em sua história onde construí um templo. Contei a ela todo esse assomo e ela riu, balançando os ombros e lançando a cabeça para trás. E disse:
- Você está
inventando!
Ela sabia. Ou antes, ela nunca
soube. Minha timidez permitiu que, no máximo, criasse amizade com seu irmão e
frequentasse sua casa. Nunca frequentei seus seios. Eles ficaram como as
estacas que impedem essa reminiscência de ser levada pelo vento dos dias.
domingo, 15 de novembro de 2020
Encerramento inscrições Chevening

quinta-feira, 12 de novembro de 2020
O ser humano vai melhorar?
segunda-feira, 9 de novembro de 2020
Dia de finados
quinta-feira, 5 de novembro de 2020
Guerra de açúcar
Você já viu uma
formiga-palhaço?
Ela arma a lona em balas
perdidas e faz a festa
Quem mata formiga-palhaço
não vai pro céu
fica zanzando num
trapézio-purgatório
e lá embaixo não tem
rede de proteção
PLAFT!

quarta-feira, 4 de novembro de 2020
Naufrágio
segunda-feira, 2 de novembro de 2020
Eu como, tu comes, nós comemos. Como assim?
BBC News
Por Elisabeth Guimarães
Desolação. O olhar assustado de Ousado – uma onça pintada macho –, em nada lembra o felino que se aproximava dos barcos atracados no parque onde habitava. Habitava. Não habita mais. Com as quatro patas queimadas, Ousado foi resgatado. Agora, atraído pelos flashs, o animal fixa o olhar entre os elos da grade que o separa do fotógrafo. Olhos no olhos. Ousado nos convida a contemplar o horror que viu e viveu no Parque do Encontro das Águas. Terras queimando. Três milhões de hectares, só no Pantanal.
Araras-azuis em dispersão. Separação. Bando/debandada. A foto acima da manchete. O voo congelado/captado pela lente fotográfica aponta para o descaso/desaforo/desrespeito à flora, à fauna, a todos e a todas que vivem no planeta. Ora, se já era refúgio, refugiadas estavam. Estavam. Não estão mais. Ameaçadas de extinção, rompem com o tradicional voo em linha reta para o desvio. Desvio das chamas que queimam o refúgio. Das 6.500 araras-azuis existentes na natureza 700 viviam na fazenda São Francisco. Viviam. Não vivem mais. Assim, como cada um de nós, cada uma de nós não é; não está; não pertence mais.
Ser, estar, permanecer é só uma aparente existência. Não somos, estamos e permanecemos mais em tempo/espaço algum. Não enquanto os olhos das onças pintadas nos revelam o horror das queimadas. Desolação. A boa notícia é que Ousado voltou para a floresta, depois de um longo período de tratamento. Não mais para o local onde habitava, mas voltou. Ser, estar, permanecer é só um estado aparente de existência. Não somos, estamos e permanecemos mais em tempo/espaço algum. Não, enquanto araras-azuis procuram refúgio.
Não há como negar o absurdo discurso presidencial brasileiro na 75a Assembleia Geral da ONU, no dia 22 de setembro deste ano. O primeiro a ser transmitido. Não por outro motivo senão aquele que determina a transmissão da participação dos países por ordem alfabética. Brasil começa com /b/ de bebê. Uma democracia frágil como um bebê. Se não tivesse mais o que fazer, a ONU, talvez, mudaria esse critério. Assim, a assembleia abriu com a fala de um negacionista. Teoria da conspiração defendida. Virulenta defesa da administração pública federal diante da pandemia coronavírus. Contagem em dólares de um desauxílio/campanha eleitoral. Agora também nega as queimadas. Contudo, a Terra é redonda. Os terráqueos deixaram a marca da humanidade na Lua. Stephen Hawking demonstrou a formação dos buracos negros para nos lembrar que física quântica não tem nada a ver com “pensamento positivo”. Tem a ver com o presente absoluto. Seres humanos são incapazes de ver além da matéria. Cegos escolhem a "realidade" em que vivem. A escolha faz com que corpos de todas as dimensões sejam materializados em pontos diversos e espalhados pelo universo. Desta vez, escolhemos o fogo.
Araras azuis não mais vivem no Pantanal. Além das onças pintadas, agora, muitas outras espécies poderiam ser chamadas de "patas queimadas". Falta-me o ar. O ar pandêmico das minhas digressões. Uma potência política me atravessa. Ninguém me representa. Somos muitos e muitas. Mas, somos uma sociedade planetária? Somos? Estamos? Permanecemos? Não há mais tempo para espera. Só nos resta arejar ideias, trocar informações, unir forças, vicejar. Como? Eu como, tu comes, nós comemos. Quem come? Quantos seres humanos comem? Um dia, depois da terra queimada, depois de as águas invadirem os continentes, depois do ar sufocado, talvez, ninguém mais coma. Tudo depende de nossas escolhas... quânticas... talvez...