Faz muito tempo que deixei de escrever
e tomar a escrita como minha mais sincera expressão. Não sei dizer exatamente
qual foi minha última criação. Entretanto, esse era um dos maiores prazeres que
eu tinha, passava horas escrevendo em cadernos, antes mesmo dos computadores de
mesa serem itens comuns nas casas das pessoas, e ficava ansiosa para a cada
término de capítulo de um novo livro, ou mesmo da ideia do tal livro, ler para
todos da minha família. Talvez tenha deixado de lado esse prazer quando comecei
a ser consumida pela urgência das obrigações do “ser adulta”, seja lá o que
isso quer dizer; mas o fato é que o desenrolar da vida foi ficando cada vez
mais urgente e foi ocupando quase que a totalidade das minhas preocupações
diárias e eu fui perdendo o encanto em criar novas histórias.
Claro que não me distanciei em absoluto
disso, pois o trabalho que escolhi, cientista política e pesquisadora, oferece
oportunidades ímpares para momentos de reflexão e posterior escrita, o que acaba
por me aproximar muito de mim mesma. E foi num destes momentos, como tantos
outros na vida, em que somos surpreendidos por insights que trazem em si
o poder de gerar sementes a serem cultivadas (ou não) que a ideia central deste
texto surgiu. A princípio como um pensamento que me rondou por dias, depois
como um texto corrido no celular, daqueles que a gente escreve no momento que
vem a inspiração. Sinta-se livre para entender como achar melhor, mas me deixa
muito confortável interpretar este ocorrido como uma crônica da vida real.
Um dia, discutindo com meu antigo grupo
de trabalho, em uma pesquisa sobre a saúde de adolescentes e jovens, acabamos
nos deparando com algumas questões surgidas de uma discussão com os jovens, em
que foram abordados, entre outras questões, os incômodos da famigerada pergunta
“O que você vai ser quando crescer”, ao que um/a deles/as pontuou algo do tipo
“Como assim o que eu quero ser? Eu JÁ não sou alguém?”. Essa observação tão
profunda da existência (embora ele ou ela não tenha classificado sua frase como
uma) foi suficiente para levantarmos, em um grupo de profissionais tão
sensíveis ao impacto dessa colocação, questões muito mais abstratas sobre “ser”
que fogem completamente do nosso raciocínio usual, e no meu caso em particular,
de alguém que busca o melhor desenho para políticas públicas. Lembrei
imediatamente do conto “O Espelho” de Machado de Assis, que havia lido na minha
adolescência, embora naquele momento eu sequer lembrasse o título para dizer,
pois ele havia ficado entre aquelas memórias de escritora que foram se apagando
ao longo do tempo.
O meu comentário, naquele momento do
calor da discussão, parecia fazer todo o sentido, pois lembrava com toda a
clareza do mundo que o tal conto tratava da história de um “não me lembro qual
patente” (hoje sei que era alferes da Guarda Nacional) que não podia mais se
reconhecer sem a farda quando se olhava no espelho. O momento passou, a ideia
desapareceu na pressa da vida e não muito tempo depois, na frenética e
superficial visualização de posts da timeline do Facebook, eis que
surge o título do conto, que havia sido adaptado a uma peça de teatro que fazia
ali sua divulgação, e eu com tempo para sanar as dúvidas, corri até a estante
da sala para buscar na coleção de livros do Machado - que meu pai com tanto
orgulho fez para mim e minhas irmãs - o livro Papéis Avulsos II, em que se
encontra o tal conto.
Confesso que reli muito mais pra afagar
meu ego - pois havia ficado maravilhada por ter tão oportunamente ressuscitado
o Jacobina (esse é o nome do personagem), naquele momento da discussão e
precisava ter certeza de que não havia dito nenhuma bobagem - do que propriamente
pelo prazer de reler Machado depois de tantos anos esquecido naquela
prateleira. Ingenuidade! Não porque a história não se trata do que eu achava
que fosse, de fato é, mas porque não foi eu que reli o conto, e sim ele que me
releu. Parei para pensar naquele diálogo mudo que se dava na transcendência
dos séculos entre o Machado e aquele/a jovem da pesquisa e percebi a quantidade
de papéis e títulos que fui adquirindo ao longo da vida e que, de alguma forma,
foram obscurecendo minha imagem sem a “farda”. Mas então, o que sou?
Qualquer apresentação que eu faça de
mim mesma vem sempre iniciada com as minhas funções sociais, seja em que dimensão
elas se encontrem mas, sobretudo, aquelas que pertencem ao mundo do trabalho:
meus títulos e onde foram conseguidos, o que faço, desde quando, o que já
publiquei. Mas é isso mesmo o que me define? O mais
complexo quando se atenta a isso é continuar e tocar em frente sem a devida reflexão de sua totalidade depois de um mea culpa, pois ficou evidente que em um dado
momento eu deixei de ser o que sou para me tornar o que estou.
Indo mais a fundo, percebo que isso
realmente está impregnado em todos os setores da vida: a gente se torna o
romance que fracassou, o montante de dinheiro que temos no banco, o carro que
dirigimos, os ambientes que frequentamos, etc, etc, etc. Obviamente que
acredito que nossa compreensão e interpretação da vida, do que é bom e o que
não é, por exemplo, são moldadas de acordo com nossas experiências, sem o que
seríamos incapazes de nos posicionar e nos mostrarmos ao mundo, ou mesmo tomar decisões futuras e nos auto preservar. Mas, para
além disso, quando nos despimos de tudo, muitas vezes fica a sensação de que
não sobrou nada, já que nos acostumamos a viver na superfície e não na
essência.
Mas, retomando a razão que me fez
começar dizendo que não escrevo há muito tempo, quando reli o conto do Machado
percebi duas coisas muito importantes. A primeira é que ele sempre foi uma
inspiração muito forte, mas tão forte, que durante muito tempo, lá na metade
dos anos 1990 e início de 2000 eu acreditava que eu poderia escrever como ele,
exatamente como ele, com uma linguagem própria do seu tempo e assim me tornar
uma ótima escritora. A segunda e mais importante para o contexto, é que
escrever sempre esteve na minha essência, ainda que sejam meus atuais textos
acadêmicos, e considero que este seja apenas um dos diversos traços do meu
"eu real" que andou adormecido e, além disso, tendo a acreditar que a
grande arte da vida é encontrar e despertar todos eles, já que estão invisíveis
na imagem que o espelho nos devolve todos os dias. Por isso, acho justo utilizar
essa “mini-crônica da vida real” para prestar minhas sinceras homenagens ao
Machado que me influenciou e continua influenciando até hoje, além de convidá-los/as a ler o referido conto, e também provocar os que lerem este texto a refletir sobre o que SOMOS quando não
ESTAMOS sendo nós mesmos/as.